Título: Cadeia neles !
Autor: Conde , Miguel
Fonte: O Globo, 07/09/2008, O País, p. 18

Agitando a bandeira do fim da impunidade, brasileiros aplaudem as algemas e amaldiçoam o habeas corpus. Estamos virando um Estado de Policiais?

Convertido hoje em prioridade nacional, o combate à violência e à corrupção foi invocado recentemente para justificar não apenas uma perigosa multiplicação de escutas telefônicas, mas também atos de desafio ao Supremo Tribunal Federal por parte de juízes e policiais. Decisões que em tese reiteram princípios fundamentais da Constituição, como a presunção de inocência dos candidatos a cargos eletivos ou o direito de responder a processos em liberdade, são recebidas com hostilidade por parte da sociedade, que vê aí apenas o exercício de velhos privilégios de classe. Inversamente, as prisões de "ricos e poderosos" são comemoradas com entusiasmo, mesmo quando feitas com truculência ou de forma precipitada. A luta por Justiça no Brasil está se tornando um mero clamor por punição? É o que pensam juízes, advogados e pesquisadores reunidos semana passada no seminário "Depois do grande encarceramento", realizado no Rio com apoio da ONU e do governo federal. Eles conversaram com o GLOBO sobre a necessidade de se combater o que chamam de "cultura da pena", e defenderam que o país precisa de menos gente na prisão.

O crime nosso de cada dia

A reunião é principalmente de advogados, juízes e pesquisadores de Direito, mas a conversa parece de antropólogos: é preciso "desconstruir o dogma da pena", "desnaturalizar a prisão", reagir à "judicialização do cotidiano".

- Existe hoje uma obsessão com a impunidade que criminalizou a vida pública. Nós não discutimos mais saúde, educação, mas só temas policiais - diz o professor, advogado e ex-governador do Rio de Janeiro Nilo Batista, hoje diretor do Instituto Carioca de Criminologia. - Temos que encontrar e cultivar modos de solução de conflitos que não passem pelos tribunais e pelas cadeias. Briga de vizinho não precisa ser caso de polícia.

Em meio a críticas a juízes autoritários e a políticos que legislam sem apoio na doutrina penal, ressurge o conflito básico, com o que alguns convidados chamam de senso comum punitivo.

- Queria que você me dissesse quando a humanidade avançou com a pena. Agora, se você quiser saber quando houve avanço contra a pena, posso dar alguns exemplos - diz Batista.

Culpado até prova em contrário

O desembargador Geraldo Prado se tornou conhecido depois de aparecer no documentário "Justiça", de Maria Augusta Ramos, quando ainda era titular da 37ª Vara Criminal. Hoje no Tribunal de Justiça, diz-se partidário de uma visão crítica das ciências penais.

- A lei não pode ser pensada fora de seu contexto social - afirma.

Perguntado sobre sua fundamentação teórica, o primeiro autor que cita não é um jurista, mas um sociólogo: o polonês Zygmunt Bauman. Para dar um exemplo prático de suas posições, elogia decisões recentes do Supremo, como a limitação ao uso de algemas e a manutenção de candidatura de pessoas processadas na Justiça:

- Chamar de ficha-suja quem está sendo processado é trocar a presunção de inocência pela de culpa. É uma inversão total, que contraria a Constituição e o Estado de Direito. Já o uso abusivo das algemas é o equivalente atual às antigas identificações criminais da ditadura, quando depois de ter a mão suja para tirar digitais os presos passavam por um ritual de humilhação em que eram exibidos aos repórteres.

120 mil presos sem julgamento

Em dezembro de 2007, a população prisional brasileira chegou a 422.373 pessoas, segundo dados do Ministério da Justiça. Entre elas, 127.562 estavam em prisão provisória, quer dizer: ainda não haviam sido julgadas. O governo federal tenta aprovar no Congresso a revisão das medidas cautelares que permitem o encarceramento antes da conclusão do processo. Propõe medidas alternativas, como a apreensão de passaportes, e a extinção da prisão provisória para pessoas acusadas de crimes cuja pena máxima seja de quatro anos. São casos em que a condenação, se vier, provavelmente será convertida em penas alternativas, que não incluem a prisão.

Constituição x Código Penal

O Código Penal brasileiro foi criado em 1940, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Apesar das modificações que sofreu desde então, ainda carrega características do momento em que foi criado, sob um regime ditatorial. O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, diz que muitas das propostas do governo para alterar o Código Penal (algumas já aprovadas) têm por objetivo torná-lo compatível com a Constituição. O juiz Rubens Casara diz que a aplicação de penas mais severas para criminosos reincidentes é "um caso evidente" de dispositivo inconstitucional.

- Não pode haver diferença das penas entre o reincidente e o réu primário. Ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime, mas é exatamente isso que o agravante de reincidência significa.

"Mais presos, mais crimes"

De 2003 a 2007, a população carcerária brasileira cresceu 37%, de 303.304 para 422.373. O país nunca teve tantas pessoas presas. Isso é bom? O Ministério da Justiça acha que não.

- Defendemos sim uma redução do número de pessoas presas. A cadeia não responde à expectativa social de resolução do problema da criminalidade. Temos que buscar maneiras de lidar com isso, e de usar o dinheiro do contribuinte - diz o secretário de Assuntos Legislativos do MJ, Pedro Abramovay.

Cadeias não coíbem o crime, diz a socióloga Vera Malagutti Batista, professora da Universidade Candido Mendes.

- Não existe estudo que demonstre relação entre o aumento do número de encarceramentos e uma diminuição do número de crimes.

Cadeias tampouco reeducam, insiste.

- E aí não importa se são cadeias suecas ou brasileiras. A taxa de reincidências dos criminosos varia pouco de um país para outro, fica sempre em torno dos 70%.

Cadeias punem? Com certeza, concorda:

- Elas segregam, degradam, corrompem. Mais um motivo para termos menos presos. Quanto mais gente tivermos lá, mais crimes vamos ter, e não menos.

Lucrando com as prisões

A Corrections Corporation of America é hoje a principal proprietária e administradora de prisões privadas nos Estados Unidos. A empresa é responsável por 66 centros de detenção no país, com capacidade para 81 mil pessoas. Suas ações são negociadas na bolsa de valores de Nova York. De 2003 a 2007, o valor de cada ação mais que triplicou, passando de US$9,61 para US$29,51.

A CCA é uma pioneira no negócio de prisões privatizadas. Começou a operar em 1983, ainda durante o primeiro mandato presidencial do republicano Ronald Reagan, e hoje se anuncia em seu site como "o quarto maior sistema correcional do país, atrás apenas do governo federal e de dois estados". O professor mexicano Fernando Tenório Tagle diz que há uma coincidência entre o desmonte do Estado do bem-estar social, o aumento do número de presos e o surgimento de prisões privatizadas nos EUA.

- O neoliberalismo troca a idéia de inclusão universal pela de merecimento. Quem fica de fora, é mesmo excluído, segregado. As prisões são um dispositivo para se lidar com isso. Ao mesmo tempo, quando isso se torna um negócio privado, é natural que as empresas envolvidas tenham um interesse no aumento do número de pessoas presas.

A impunidade é a regra

"A impunidade não é a exceção, mas a regra", diz o criminólogo italiano Massimo Pavarini, professor da Universidade de Bolonha:

- Um político não pode dizer que o combate à impunidade é inviável. Mas é a verdade.

Segundo ele, o número relativo de crimes cometidos anualmente é mais ou menos o mesmo na maioria dos países: corresponde a 25% do número de habitantes. Uma meta realista, afirma, não é a redução do número de crimes, mas a criação de políticas que resultem em crimes menos violentos e menos lesivos.

- Numa sociedade mais rica e com melhor distribuição de renda, o número de furtos aumenta muito, por que há muito mais bens móveis como celulares e iPods. Em compensação, os crimes violentos são raríssimos.