Título: O despachante do crime
Autor: Werneck, Antônio e Schmidt, Selma
Fonte: O Globo, 07/09/2008, Rio, p. 19

Derrame de carteiras de habilitação falsas beneficiou até traficante de drogas.

Conseguir carteira de habilitação falsa no Rio é tão fácil que até traficantes de drogas procurados estão andando por aí com elas. Não é por acaso que um homem que se apresentava pelo nome de Luiz Felipe Madureira de Souza, de 55 anos, sócio da empresa Star Light Comércio e Representações Ltda, passou a ser procurado por policiais civis. Eles descobriram que Luiz Felipe era o nome falso criado pelo despachante José Felipe de Souza Barreto, acusado de fornecer carteiras de habilitação para um grupo de traficantes de uma das maiores facções do crime do Rio. Depois de ter sua prisão preventiva decretada pela Justiça, em abril, José Felipe desapareceu. Agora, é considerado foragido e procurado.

Usando os documentos "frios", José Felipe montou um escritório na Avenida Presidente Vargas, próximo ao prédio do Detran, no Centro. Na sala que alugou, repórteres do GLOBO não encontraram ninguém. Mas era ali que ele operava uma central para legalizar a vida da nata do crime organizado carioca. Um dos seus clientes era Antonio de Souza Pereira, o Tota, o bandido mais procurado do Rio, apontado pela polícia como chefe do tráfico nas favelas do Complexo do Alemão. Tota, por motivos óbvios, usou os serviços do despachante para tirar carteira de motorista e cédula de identidade, com nomes falsos.

A investigação para prender José Felipe começou este ano e mobiliza o Setor de Inteligência da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco). Policiais chegaram até o despachante com a prisão de Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, acusado de ser o chefe do tráfico na Mangueira. Quando foi preso, Tuchinha usava habilitação e identidade falsas, documentos fornecidos por José Felipe.

Identidade falsa no cartão de crédito

Segundo agentes da Draco, José Felipe - que tem duas passagens pela polícia - usou suas habilidades para criar um "boneco" (pessoa fictícia), identificado como Luiz Felipe Madureira de Souza. Usando o nome falso, abriu contas em banco, alugou uma sala na Avenida Presidente Vargas e até conseguiu cartão de crédito internacional, além de outras vantagens, como linhas telefônicas, cédula de identidade e carteira de motorista.

- Ele montou um "boneco" para praticar crimes e dificultar as investigações da polícia. Seus clientes eram criminosos procurados, como traficantes de determinadas facções - disse um agente da Draco.

Com mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça, os policiais civis estiveram no escritório. Encontraram tantos documentos que ficaram surpresos: espelhos de carteiras de motorista, fotografias de traficantes procurados e uma agenda com telefones e endereços. Tudo está sendo investigado. Os policiais também descobriram que José Felipe falsificava documentos de carros e aplicou outros golpes: gastou muito dinheiro com o cartão de crédito e sumiu sem quitar a dívida com o banco.

Os agentes da Draco constataram que José Felipe não atuava sozinho: comandaria uma rede de falsários com ramificações em vários bairros do Rio, da Baixada Fluminense e do interior. Os policiais investigam se o grupo tem ligações com um suposto funcionário do Detran e com pelo menos duas auto-escolas na capital.

Motoristas não temem pegar a estrada com carteiras de habilitação falsas. Só em rodovias federais do estado agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) flagraram, este ano, 39 documentos com fortes indícios de falsificação, durante acidentes e abordagens. Mais da metade das apreensões (20) ocorreu em estradas do Norte e do Noroeste fluminense. No último flagrante, dia 2, o agente penitenciário Pedro Roberto Dias Abel, que dirigia um carro alugado, atropelou cones de sinalização em frente ao posto da PRF localizado no quilômetro 269 da BR-101, em Rio Bonito. Abel apresentou uma carteira aparentemente "fria".

Na opinião do inspetor André Luiz de Azevedo, assessor da PRF no Rio, a corrupção é facilitada porque o primeiro contato do postulante a motorista costuma ser com a auto-escola. O ideal, segundo ele, é tornar obrigatório que o agendamento com o Detran - para a entrega de documentos, fazer foto e colher digitais, passo inicial para obter habilitação - tenha que ser feito exclusivamente pelo interessado.

- As pessoas costumam procurar direto as auto-escolas, que oferecem a comodidade de fazer o agendamento, além de pacotes, dividindo o custo em cinco ou seis vezes. Acreditamos que as quadrilhas estejam infiltradas em auto-escolas - explicou o inspetor.

Azevedo contou que os agentes da PRF fazem cursos de formação para poder analisar as carteiras apresentadas por motoristas. Usam ainda lanternas especiais:

- O papel tem marcas d"água. Usamos lanternas de ultravioleta para identificar a falsificação.

Já a compra de carteiras verdadeiras por meios fraudulentos - sem fazer aulas e exames - foi dificultada com a implantação, pelo Detran, do programa CFC (Centro de Formação de Condutores) digital, em 28 de abril. Mas o presidente do Sindicato das Auto-Escolas do Rio, João Pinto Ribeiro, revelou que chegou a haver tentativas de bular o sistema:

- Soube que tentaram usar dedo de silicone e adiantar relógios para que alunos não precisassem assistir as aulas (com o novo programa, aluno e instrutor são identificados pelas digitais no começo e no fim das aulas). Só que não deu certo.

Para o presidente do Sindicato de Auto-Escolas, a única brecha para a compra de carteira no Rio é durante o exame de direção, quando o que vale é o contato entre o aluno, o instrutor e dois examinadores do Detran.

- Um instrutor poderia dar uma gratificação aos examinadores para facilitar a prova. Não descarto a hipótese, embora só se saiba quem são os examinadores na hora da prova.

O número de carteiras de habilitação emitidas pelo Detran aumentou quase 18% de janeiro a julho deste ano, em relação ao mesmo período de 2007: de 65.610 para 77.288. Apesar desse crescimento, a diretora de Habilitação do Detran, Helena Diniz, revelou que há casos de pessoas que deixaram de fazer a carteira no Rio após a implantação do CFC digital.

O Detran alertou que nem todas as auto-escolas existentes no estado estão habilitadas a formar motoristas. Desde 28 de abril, só podem funcionar aquelas que implantaram o sistema de biometria. Ou seja, do total de 619 auto-escolas instaladas no estado, 520 podem operar e 99 deveriam estar fechadas. Na capital, de 273 auto-escolas, 230 estão aptas a funcionar. A lista das autorizadas está no site do Detran (www.detran.rj.gov.br).