Título: Grampos eletrônicos: usos e abusos
Autor: Bertasi, Maria Odete Duque
Fonte: Correio Braziliense, 25/05/2009, Opinião, p. 13

Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil

A justa indignação pública contra a vulgarização de aparatos tecnológicos, sob o pretexto de agilizar investigações, parece finalmente encontrar eco entre as principais autoridades do país. A iniciativa dos presidentes dos três poderes basilares da República de estabelecer um pacto que permita coibir abusos dos chamados ¿grampos eletrônicos¿ deve ser saudada como passo necessário para interromper o que já está mais do que caracterizado como efetiva ameaça ao Estado de direito.

Não há dúvida de que é urgente dar resposta inequívoca ao que alguns denominaram jocosamente de ¿República da grampolândia¿. À parte o tom pilhérico da denominação, o fato é que se caminhava celeremente para a institucionalização de uma espécie de Estado policialesco, fato que ficou mais do que patente quando, no ano passado, tornou-se pública a invasão da privacidade telefônica da mais alta autoridade da Justiça no país ¿ o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes.

Na ocasião, o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) repudiou, em nota veemente, a afronta aos princípios fundamentais da democracia. A questão, contudo, tem facetas complexas, merecendo profundas reflexões. Em primeiro lugar, é inequívoco o direito à privacidade, assegurado claramente na Constituição.

O próprio texto magno do ordenamento jurídico nacional admite apenas uma exceção, com as devidas ressalvas. O inciso XII, do artigo 5º, da Carta enfatiza a inviolabilidade do sigilo privado, explicitando sua quebra apenas no caso das comunicações telefônicas, mesmo assim somente ¿por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual¿.

É cristalino, portanto, o limite constitucional que afasta a utilização legítima de tecnologia de inteligência da banalização abusiva desses meios, não raro em benefício de interesses que nada têm a ver como o nobre objetivo de promover a Justiça. Não obstante, é imperativo reconhecer que a tecnologia cada vez mais se torna arma de alto poder nas mãos de quem se dedica a práticas criminosas, sobretudo as mais sofisticadas, caso dos crimes financeiros.

Como consequência, seria retrocesso restringir de forma impeditiva o uso dessas tecnologias por parte de instituição ou de autoridade cujo dever, outorgado pela sociedade democrática, é justamente prevenir, investigar e coibir crimes. Recordando uma expressão popular, seria o mesmo que entregar o ouro ao bandido. Literalmente, uma vez que a tecnologia, na vida contemporânea, é mesmo ouro puro.

O desafio, dessa maneira, deve ser colocado em sua complexa dimensão. Ou seja, como limitar o uso de aparatos tecnológicos ao estrito cumprimento dos deveres dos profissionais do direito, impedindo com isso abusos indesejáveis, sem, contudo, manietar a eficiência e eficácia das investigações ou instruções processuais?

A questão é tão profunda que, para respondê-la, parece crucial não excluir do debate os principais interessados, em especial os profissionais do direito. Nessa perspectiva, a iniciativa dos titulares máximos dos poderes que dão base à República deve ser compreendida como caminhada que não se esgota em seu primeiro passo. As regras a serem derivadas dessa iniciativa ¿ cuja meta de impedir violações aos direitos fundamentais dos cidadãos é certamente meritória ¿ ganharão mais efetividade se os legítimos representantes de magistrados, advogados, delegados e promotores forem chamados a discutir todos os diversos ângulos da questão.

De parte dos representados pelo Iasp, aprofundar esse debate é fundamental para assegurar que a discussão não se esgote nas manifestações dos mais altos líderes do país. E, mais do que isso, resulte em medidas que, de fato, eliminem abusos da tecnologia e legitimem seu uso em benefício da sociedade democrática.