Título: Os EUA vão ficar mais parecidos com a Europa
Autor: Alves, Cristina
Fonte: O Globo, 14/09/2008, Economia, p. 34

Economista da FGV e do Impa diz que, após crise, expectativa é que americanos passem a regular mais mercados.

Um dos mais consagrados economistas do país, o professor Aloisio Araújo, da Fundação Getulio Vargas e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), gosta de debater não só as ciências exatas que lhe deram fama, mas também a rotina da cidade - tem teses sobre favelas e sistema prisional. Agora, está empunhando uma nova bandeira: defende o uso de recursos do pré-sal para a educação infantil. Araújo - que dirige o Centro de Microeconomia Aplicada da FGV, voltado à questão de regulação de bancos e lei de falências - é categórico ao falar de crise americana. Na sua opinião, a partir de agora, os EUA estão mais dispostos a controlar e regular mercados, como faz a Europa.

Cristina Alves

O banco central americano e o Tesouro injetaram US$200 bilhões para salvar duas gigantes de hipotecas. É o fim do liberalismo?

ALOISIO ARAÚJO: Essas grandes questões ideológicas acabaram há muito tempo. O que estamos vendo no mundo é uma economia de mercado mais regulada - e regulada de forma inteligente. Milton Friedman, que era um ícone do liberalismo, quando se tratava de questão financeira, sempre foi favorável a um controle total. Justamente porque ele viu como a crise bancária provocou o desastre de 1929. Mas é difícil regular bem. O sucesso das economias modernas é quão bem elas regulam.

E em que as autoridades econômicas americanas erraram?

ARAUJO: Houve grandes erros, e um dos principais foi o da garantias implícitas. A Fannie Mae e a Freddie Mac (as duas empresas de hipotecas estatizadas na semana passada) ficaram com garantias implícitas grandes. Outro erro regulatório foi imaginar que se podia ter liberdade para os produtos derivativos. Os bancos acabaram tendo perdas fortes. A autoridade monetária não se preocupava porque, aparentemente, aquelas operações estavam fora do risco dos bancos. As empresas de hipotecas tinham lucro, pagavam muito bem a seus executivos....

O senhor está pessimista?

ARAÚJO: Acho que não há indícios graves de que a crise esteja se espalhando. O Bernanke (Ben Bernanke, presidente do BC americano) é um especialista em Grande Depressão. O Henry Paulson (secretário de Tesouro) enviou ao Congresso projeto de lei dando mais poderes ao Fed para atuar nos mercados em caso de risco sistêmico. O mercado se sofisticou muito e exige novo marco regulatório. Provavelmente os Estados Unidos vão ficar mais parecidos com a Europa, mais contido e regulado.

Os riscos de uma crise de crédito no Brasil estão afastados?

ARAÚJO: A gente teve o Proer (programa que saneou bancos após o Plano Real, que derrubou a inflação), os programas estaduais. Tomamos uma série de medidas muito boas, como o Fundo Garantidor de Crédito. Hoje o total de crédito em relação a PIB é muito pequeno. Em termos de alienação fiduciária, temos 3% a 4% do PIB só. O que eu espero é que não se prejudique aqui a nossa expansão do crédito por causa disso. Essa crise é muito mais americana e inglesa.

Então, regular ou não mercados é hoje um falso dilema?

ARAÚJO: Numa economia moderna, o sistema regulatório é importante e tem que ser bem feito. Não existe o modelo puro de Hayek (Friedrich August von Hayek, economista da escola austríaca que defendia que os sistemas são complexos demais para serem planejados por uma instituição central e devem evoluir espontaneamente).

O mundo vai viver uma recessão?

ARAÚJO: Acho que é um ciclo natural. Crescemos muito, principalmente de 2001 para cá. Estamos num novo ciclo e as projeções do FMI mostram isso. Os países desenvolvidos vão crescer menos. E os emergentes vão crescer mais que os desenvolvidos.

O Brasil cresceu 6,1% no segundo trimestre, acima das expectativas. Mas, quando olhamos para os Brics, perdemos. Por que não conseguimos crescer como eles? Temos que nos envergonhar?

ARAÚJO: Porque eles, com exceção da Rússia, são mais pobres que o Brasil, têm renda per capita mais baixa. No caso russo, você tem uma densidade de recursos naturais que é quatro vezes a nossa e uma população que é a metade da brasileira.

O presidente Lula diz que Deus passou por aqui, mas Ele passou por lá antes?

ARAÚJO: Nós fomos favorecidos, mas eles (russos) foram mais ainda. Mas não podemos nos queixar. A Índia tem ineficiências econômicas muito grandes, nível educacional mais baixo, problemas sociais. Acho que o Brasil tem condições de continuar crescendo 4,5% em média por vários anos.

Não faz sentido falar dos Brics? É uma bobagem?

ARAÚJO: Os Brics são muito diferentes. É um conceito, eles vão ser players importantes na economia mundial, mas são muito diferentes entre si. Não é um conceito tão profundo. Se tivéssemos que nos envergonhar seria pela educação, principalmente a infantil, sobretudo se nos compararmos com a Coréia.

O senhor defende que o dinheiro do pré-sal vá para a educação infantil. Como?

ARAÚJO: Precisamos acordar para esse problema. Fez-se a universalização do ensino, mas nunca se olhou direito o problema. Começamos de uma base fraca de comparação e o progresso sempre foi muito lento. Para fazer andar agora, só investindo pesado nessas crianças de zero a cinco anos. James Heckman (da Universidade de Chicago) já comprovou os benefícios da educação na mais tenra idade. O brasileiro Flávio Cunha e o português Pedro Carneiro mostram como se pode obter alta taxa de retorno com esses investimentos em educação infantil. Desenvolvemos esse trabalho interdisciplinar na Academia Brasileira de Ciência. Os neurocientistas mostram como nessa idade as crianças têm uma grande janela de oportunidade para se desenvolver. Isso é investimento, não é transferência de renda, não é Bolsa Família, não é para aliviar penúria social.

Como se faria a aplicação e a fiscalização desses recursos? Nos municípios?

ARAÚJO: A educação infantil é tarefa dos municípios, mas é preciso participação grande da federação para treinar melhor os educadores, exigir qualidade, repassar mais dinheiro a profissionais com mais vocação, exigir performance. Os benefícios são enormes: você consegue reduzir criminalidade e até a gravidez na adolescência.

O que o senhor acha do modelo da Noruega para o pré-sal?

ARAÚJO: O Brasil é muito diferente da Noruega, eles não precisam de investimentos tão pesados em educação, por exemplo. Os recursos do petróleo não são eternos. Se você faz populismo, faz transferências de renda, quando acaba o dinheiro, a população volta a ser pobre. Também não fico satisfeito que a gente faça um fundo no exterior. As tentações populistas são grandes, mesmo na Noruega. Lá, o partido de centro-esquerda criou um fundo com recursos do pré-sal. Passados alguns anos, agora o de centro-direita quer usar o dinheiro.