Título: Sinais de acordo na Bolívia
Autor: Galhardo, Ricardo
Fonte: O Globo, 14/09/2008, O Mundo, p. 37

Governo e oposição se reúnem e Morales já admite revisão de projeto da nova Constituição

Depois de uma reunião que varou a madrugada de ontem, autoridades do governo boliviano chefiadas pelo vice-presidente, Alvaro Garcia Linera, e o prefeito (governador) do departamento de Tarija, Mario Cossío, representantes dos cinco departamentos (estados) que defendem autonomia em relação a La Paz estabeleceram as bases para um diálogo que possa pôr fim à escalada de violência que deixou 16 mortos no departamento de Pando (fronteira com o Acre) e centenas de feridos em todo o país. Morales chegou a admitir a revisão do projeto da nova Constituição boliviana, considerada a gênese dos confrontos. As negociações continuam hoje, depois de uma rodada de consultas aos prefeitos dos demais departamentos.

Já em Pando, principal foco de conflitos entre autonomistas e governistas, a situação continua tensa em razão do estado de sítio decretado por Morales. Anteontem um homem foi morto na frente das câmeras de TV durante a retomada do aeroporto pelas Forças Armadas. A imagem foi repetida à exaustão durante todo o dia e o estado de sítio se transformou em mais um motivo para que líderes dos departamentos autonomistas continuem pressionando o governo.

- Cumprimos o primeiro objetivo que era instalar esta abertura que, oxalá, possa se converter em um processo de diálogo e acordo. Identificamos o que podem ser as bases para este diálogo e concordamos na necessidade da pacificação imediata do país - disse Cossío, ontem, ao término da reunião.

Poucas horas depois Morales anunciou o que pode ser o primeiro passo para um acordo, a revisão dos dispositivos sobre a autonomia dos departamentos no projeto constitucional.

- Estamos autorizados pelos movimentos sociais a revisar o projeto de autonomia que está na Constituição do Estado - disse Morales em uma entrevista coletiva.

Governo retoma refinaria

A revisão da Constituição (aprovada unilateralmente pelos parlamentares governistas), a restituição do repasse de 4% do IDH (imposto sobre hidrocarbonetos) e a adoção dos estatutos autonômicos aprovados nos departamentos da chamada Meia Lua (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija) são as principais reivindicações dos prefeitos opositores. Em troca, Morales exige que os autonomistas devolvam as dezenas de prédios públicos tomados durante a semana.

- Se os prefeitos devolverem as instituições do Estado, se deixarem de atentar contra o patrimônio público que são os gasodutos e refinarias, não há por que pensar em ampliação do estado de sítio - disse o presidente.

Ontem, o governo central retomou, com ajuda da Polícia Nacional e das Forças Armadas, o controle sobre a refinaria de Palmasola, o poço de Samipatay e as bombas de Yacuiba-Rio Grande e Pocitos. Não há registro de casos graves de violência.

Apesar do aparente avanço nas negociações, a situação continua tensa nos departamentos opositores. Em Santa Cruz, um grupo de autonomistas tentou invadir o consulado da Venezuela mas foi contido pelas forças policiais. As declarações do presidente venezuelano, Hugo Chávez, de que poderia apoiar uma intervir militar na Bolívia irritaram as Forças Armadas, que vieram a público dizer que não vão tolerar qualquer iniciativa neste sentido. As estradas continuam bloqueadas em pelo menos 35 pontos do país.

Em Pando, onde foi declarado estado de sítio com as mortes de 16 pessoas, a situação continua muito tensa. Um homem foi morto durante a retomada do aeroporto de Cobija, capital do departamento, pelas Forças Armadas. Imagens exibidas pelas TVs locais mostram um homem de cabelos grisalhos e camisa xadrez ferido no peito nos braços de um militar. O militar implora pela presença de uma ambulância que nunca chega, pois seus gritos são encobertos pelo estampido das rajadas de metralhadoras e granadas. Enquanto o militar de desespera o homem ferido vai agoniza até desfalecer em seus braços.

As imagens foram usadas pelas emissoras de TV para contrapor as promessas de diálogo e pacificação feitas depois da reunião desta madrugada. O estado de sítio em Pando se transformou no novo trunfo dos líderes dos comitês cívicos oposicionistas contra o governo Morales.

- O estado de sítio busca calar as vozes das pessoas que têm todo o direito democrático de se manifestar. Considero que o governo pretende gerar mais violência e confrontação entre os bolivianos - disse o presidente do Comitê Cívico por Santa Cruz, Branko Marinkovic, ressaltando que entretando confia no diálogo e pacificação do país.

Marinkovic, apontado como possível candidato da oposição à sucessão de Morales, anunciou ontem o envio de uma carta à ONU na qual pede a participação da entidade nas negociações de paz na Bolívia.