Título: Analfabetos jurídicos
Autor: Rebouças, Helder
Fonte: O Globo, 19/09/2008, Opinião, p. 7

A ninguém é permitido alegar o desconhecimento da lei. De fato, o conhecimento e a compreensão da legislação vigente são importantes para a estabilização das relações sociais e para o próprio exercício dos direitos individuais. Entretanto, é impossível a completa assimilação das informações do universo legislativo, principalmente por indivíduos de grupos sociais socialmente vulneráveis.

No Brasil, a compreensão dessas informações é dificultada pelo número excessivo de normas. O Projeto LEXML Brasil, que busca integrar a recuperação da informação legislativa, tendo à frente o Senado Federal, indica que foram editadas mais de três milhões de normas nacionais, desde 1988, nas esferas federal, estadual e municipal. A consolidação das leis da saúde, por exemplo, aprovada recentemente pelo Senado, é uma manifestação política da necessidade de reduzir a complexidade do nosso sistema jurídico.

Além desse "cipoal" legislativo, o cidadão enfrenta a complexidade da linguagem das leis. Veja-se, por exemplo, o caso da lei 10.741, de 2003, conhecido como o Estatuto do Idoso. Para garantir que a prioridade, na tramitação de processos na Justiça, estenda-se ao companheiro ou à companheira do idoso, em caso de morte, o Estatuto assim se expressa: "A prioridade não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, (...)." Boa parte da população, talvez, não saiba o que venha a ser "cônjuge supérstite". O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, prevê a atuação individual ou coletiva dos consumidores, na defesa dos seus interesses. No caso coletivo, a lei informa que isso será possível quando envolver "interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos desse código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". Quais consumidores compreenderiam esse "recado" trazido pela lei?

A XIV Cúpula Judicial Ibero-Americana, reunida em Brasília, em março deste ano, propôs a chamada "alfabetização jurídica", como forma de ampliar o acesso da cidadania à Justiça. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), nessa tendência, desenvolve projetos de reeducação lingüística nos tribunais e nas faculdades de Direito, para reduzir o "juridiquês". Aliás, em 1998, o Congresso Nacional aprovou a lei complementar nº 95, determinando "o uso de palavras e expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico". Cumprir essa regra de clareza tem sido uma das principais orientações do senador Garibaldi Alves, presidente do Senado Federal. Na verdade, somos todos, em alguma medida, analfabetos jurídicos. Embora tenhamos o acesso às leis, é certo que os seus conteúdos ainda estão distantes da compreensão do homem comum.

HELDER REBOUÇAS é diretor da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência do Senado.