Título: Um quadro estarrecedor
Autor: Itagiba, Marcelo
Fonte: O Globo, 22/09/2008, Opinião, p. 7

A interceptação telefônica é um instrumento fundamental e necessário para a identificação e reunião de provas contra autores de crimes graves, como o de colarinho branco, corrupção, lavagem de dinheiro, contrabando, tráfico de armas e drogas. O emprego deste mecanismo na desarticulação das organizações criminosas deve seguir os estritos limites da lei. Afinal, a inviolabilidade das comunicações está protegida pela Constituição Federal.

A lei que regulamentou a escuta no país definiu que a interceptação é permitida somente quando a autoridade policial fundamentar, de forma sólida, que a sua execução é indispensável à elucidação de um crime e ficar devidamente demonstrado não ser possível, por outros meios, colher as informações. Em suma, a regra é a preservação da privacidade. A sua invasão, quando autorizada pela Justiça, é uma exceção.

Porém, diante das 409 mil interceptações concedidas pelo Judiciário em 2007, constata-se que há uma banalização do uso do mecanismo, o que pode vir a enfraquecê-lo como instrumento de combate ao crime. Há casos de escutas deferidas por juízes trabalhistas, grampos executados por órgãos que não têm a prerrogativa de fazê-lo, como a Polícia Rodoviária Federal, e linhas interceptadas por mais de dois anos, quando a lei prevê o prazo de 15 dias, renovável uma única vez pelo mesmo período.

O que torna o quadro ainda mais estarrecedor é o fato de que nenhum órgão público (polícias judiciárias, Ministério Público e Poder Judiciário), numa demonstração cabal da falta de controle, foi capaz de informar à CPI das Escutas Telefônicas a quantidade de telefones interceptados.

Antes, dizia-se, de forma genérica, que a polícia, arbitrariamente, prendia, para depois investigar. Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a consolidação da democracia no país, a sociedade civil organizada passou a exigir a inversão daquela prática policial. A partir de 1996, com a edição da lei de interceptações, e até alguns anos atrás, investigava-se e, quando necessário, interceptava-se. Hoje, grampeia-se para depois investigar.

A CPI apresentará, ao final, o projeto de criação do Código Nacional de Interceptações de Comunicações, para garantir maior controle pelo Judiciário das interceptações telefônicas e telemáticas (e-mails e afins), que só poderão ser autorizadas mediante instauração de inquéritos policiais. O texto deverá prever penas rigorosas para os autores de grampos ilegais e para os agentes públicos responsáveis por vazamentos de informações revestidas de sigilo judicial.

A responsabilização dos agentes públicos não poderá, de forma alguma, dar margem a interpretações que suscitem tentativas de atingir o direito à informação e a liberdade de imprensa. O crime é de quem vaza, não de quem publica a informação no interesse público.

O Código regulamentará, também, a fiscalização, pelo Poder Público, da importação e venda de equipamentos de escutas, com punições graves para aqueles que os comercializarem ou os portarem desautorizadamente.

A banalização do grampo, assim como os vazamentos de diálogos prévia e ardilosamente editados, está inserida num perigoso princípio segundo o qual os fins justificam os meios. Os fins não podem justificar meios ilegais.

A supressão das garantias individuais daqueles que se tornam alvos dos militantes do direito penal do inimigo nos remete a momentos trágicos da história política em que, enraizado o estado policial, foram subjugados hereges, judeus, ciganos, homossexuais, negros, índios e comunistas, entre muitos.

Na democracia, cada um tem um papel a cumprir: às polícias judiciárias cabe investigar os crimes; ao Ministério Público, a denúncia desses crimes e a fiscalização do fiel cumprimento da lei; e ao Judiciário, a total isenção na apreciação dos fatos, permitindo o contraditório e o devido processo legal.

Não há dúvida de que o combate ao crime exige leis duras e forças policiais estruturadas. Porém, é preciso repudiar o atropelamento da ordenação legal do país que decorre da busca desmedida pela incriminação de suspeitos, inclusive com o uso indevido das estruturas do Estado, como os sistemas de interceptação telefônica. Na democracia, não se combate o crime com ações abusivas, ilegais ou criminosas. Mas, com inteligência e o poder legal e legítimo do Estado.

MARCELO ITAGIBA é deputado federal (PMDB-RJ) e presidente da CPI do Grampo.

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