Título: Debaixo do tapete
Autor: Bruno, Cássio; Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 21/09/2008, O País, p. 3

No estado, 22 maiores cidades gastam R$40 milhões mensais com lixo, e eleições influenciam

Cássio Bruno e Chico Otavio

Limpeza é o negócio, mas o serviço prestado não garante uma população livre de toda a sujeira. Para recolher o lixo das 22 maiores cidades fluminenses, empresas privadas recebem mensalmente R$40 milhões das prefeituras. Um negócio milionário, onde a relação entre contratado e contratante nem sempre segue as regras do jogo. Enquanto as empresas doam dinheiro para campanhas políticas (20 candidatos nas duas últimas eleições), os prefeitos brindam o setor com contratos de até 30 anos de duração, muitos deles emergenciais, assinados com dispensa do processo de licitação.

Das 22 cidades com mais de cem mil habitantes no Estado do Rio, só uma, Teresópolis, informou que não terceiriza o serviço de coleta. Nas demais, o trabalho é feito por 12 empresas, contratadas por licitação, emergência ou concessão - alguns contratos incluem também varrição das ruas e destinação do lixo. Uma delas, a Serviflu Limpezas Urbanas e Industriais, ganha R$5,2 milhões mensais para atender a quatro municípios (Nilópolis, Belford Roxo, Nova Iguaçu e São Gonçalo).

Lixo representa até 15% dos gastos

As prefeituras gastam muito com lixo. O professor José Araruna, do Departamento de Engenharia Civil da PUC-Rio, diz que a coleta e a destinação de resíduos sólidos comprometem de 7% a 15% dos orçamentos municipais. Como as prefeituras chegam a gastar até 60% dos recursos com folha de pagamento, o lixo muitas vezes lidera a lista das outras despesas.

- O lixo é um bom negócio para as empresas. Geralmente, os prazos dos contratos são longos e o dinheiro é líquido e certo, já que o serviço não pode parar - disse Araruna.

De quatro em quatro anos, porém, a indústria do lixo sofre uma reviravolta. É quando chegam as eleições municipais. Tudo pode acontecer, da suspensão unilateral à renovação de contratos por prazos largos. Na dúvida sobre o que vai acontecer, a Serviflu já iniciou um processo de enxugamento.

- Não sabemos o que poderá acontecer. As eleições podem mudar muita coisa - disse o gerente da empresa, Wilton Sales.

Para reduzir o impacto das urnas e, em certos casos, tirar vantagem dele, empresas abrem os seus cofres para os candidatos.

- Temos interesse em participar, mas este ano não será possível. As prefeituras estão atrasando o pagamento - queixa-se Wilton.

Consulta ao site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revela que a indústria do lixo financiou, no Estado do Rio, em 2004 e 2006, 20 candidatos (a prefeito, vereador, senador, deputado federal e deputado estadual). Destes, nove disputarão as eleições deste ano para prefeito em sete cidades - no Rio, Fernando Gabeira (PV), Jandira Feghali (PCdoB) e Filipe Pereira (PSC).

As empresas mais generosas foram a Locanty Comércio e Serviços, a Limpacol Comércio e Serviços, a Delta Construções e a Vega Engenharia Ambiental. Todas têm contratos com prefeituras locais. Uma delas, a Vega, protagonizou um caso curioso: a empresa doou R$225, em 2004, ao comitê do então candidato a prefeito de Barra Mansa Roosevelt Brasil (PMDB). Foi como acertar na loteria, pois Roosevelt, eleito, assinou com ela um contrato de R$170 mil mensais.

A maioria das doações, porém, nada tem de simbólica. O prefeito carioca, Cesar Maia, recebeu R$200 mil da Vega quando disputou a reeleição em 2004. No mesmo ano, Maria Lúcia dos Santos, em Belford Roxo, e Leandro Sampaio, em Petrópolis, receberam, cada um, R$50 mil da Limpacol. Já Riverton Mussi, então candidato de Macaé, símbolo das prefeituras favorecidas com os royalties do petróleo, embolsou R$120 mil da Delta Construções.

As doações não foram focadas apenas no poder executivo. A vereadora Sílvia Pontes (DEM), eleita para a Câmara do Rio, teve praticamente a campanha bancada pela indústria do lixo - recebeu R$50 mil da Locanty e Limpacol. Da lista de contemplados, também fazem parte o ex-deputado Álvaro Lins e o vereador Quiel do Canarinho (PDT), alvo de investigações sobre a ação de milícias em Duque de Caxias.

Não é claro o retorno que essas empresas esperam ter com as doações, mas os problemas gerados por este tipo de relação já começam a bater à porta do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ). Auditores do TCE já descobriram pelo menos três contratos emergenciais (com dispensa de licitação) firmados sem justificativa em Duque de Caxias, Queimados e Magé, na Baixada.

Emergência impede licitação pública

A Delta, por exemplo, foi contratada em caráter emergencial, em dezembro de 2006, para colher o lixo de Duque de Caxias por um período de seis meses. Na época, a prefeitura alegou que o processo de licitação fora suspenso por liminar, e a cidade não poderia ficar sem o serviço. Os auditores descobriram, contudo, que sucessivas renovações mantêm a empresa em Duque de Caxias até hoje. A Delta recebe R$3,3 milhões mensais para coletar 16 mil toneladas de lixo.

O TCE fiscaliza com dificuldade os contratos do lixo. Além da falta de documentação, nunca encaminhada nos prazos exigidos, não é fácil acompanhar a execução do serviço. Somente investigações mais profundas conseguem mostrar os vícios do setor. Em São Gonçalo, o MP abriu inquérito para apurar a precariedade do serviço de coleta de lixo prestado pela Serviflu.

- Vamos entrar com uma ação contra a prefeitura e a empresa - disse a promotora Renata Neme Cavalcanti, da 1ª Promotoria de Tutela Coletiva da cidade.

Investigações anteriores já renderam processos. A Operação Mapa, maior até agora promovida pelo MP contra a indústria do lixo, comprovou em 2003 que a Limpacol, substituta da Locanty na coleta de lixo em Belford Roxo, tinha vínculos com a antecessora: seu responsável técnico era sócio da Locanty e a empresa operava sem caminhões próprios, usando os veículos da primeira.

Hoje, a cidade é atendida pela Serviflu, que recolhe mensalmente 12 mil toneladas de lixo e os despeja no lixão do Babi, bairro da cidade. No meio de um entra e sai constante de caminhões, pelo menos 120 catadores reviram diariamente o lixão em busca da sobrevivência. A maioria chega a trabalhar 12 horas. Nem eles escapam da indústria do lixo. Um grupo denunciou um suposto esquema que os obrigaria a comercializar objetos encontrados no local por preços abaixo do mercado para um único ferro-velho.

- Todos trabalham em regime de escravidão. Tudo o que a gente encontra aqui tem que vender para o ferro-velho, que paga baixo. Quem contraria esse esquema é ameaçado - contou um dos catadores.

oglobo.com.br/eleicoes2008

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