Título: Apostas na fraude
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 28/09/2009, O País, p. 3
PF tem gravações que comprovam manipulação em máquinas de bingos
CARREGADORES TRANSPORTAM videobingos apreendidos semana passada no Rio: máquina alterada é chamada de "draculinha"
Chico Otavio
Se os parlamentares quiserem conhecer um pouco mais do mercado dos bingos e caça-níqueis, que o Congresso cogita legalizar, os arquivos sonoros da Operação Furacão podem fornecer um bom panorama. Conversas gravadas pela Polícia Federal durante as investigações revelam que os programas de apostas eletrônicas instalados nas máquinas das casas de jogos do Rio eram rotineiramente violados para ludibriar apostadores e lavar dinheiro.
Do conjunto de gravações, O GLOBO teve acesso a três conversas mantidas entre o empresário de jogos Jaime Garcia Dias; o seu braço direito, Adilson Oliveira Coutinho Filho; e o ex-gerente do Bingo Laranjeiras José Luiz da Costa Rebelo. Nos diálogos, os interlocutores tratam abertamente de dois tipos de fraude: a manipulação do valor acumulado de apostas e a indução da máquina para produzir um resultado financeiro fixo, sem riscos para o explorador do negócio.
Expressões como "receita do bolo" (adulteração de programas) e "draculinha" (máquina viciada) aparecem nos diálogos. Num deles, Adilson e José Luiz combinam a redução artificial do valor das apostas acumuladas para diluir o valor do prêmio e aumentar a frequência da premiação, estimulando a "compulsividade" do apostador.
- O cara acertar R$30 mil, R$40 mil vai chamar a atenção. Não precisa dar uma porrada de R$200 mil - diz Adilson a José Luiz.
Bingos: sonegação, laranjas e corrupção
Os processos abertos com base na Operação Furacão demonstram que a "receita do bolo" dos bingos e caça-níqueis vai além da adulteração de programas. As casas de apostas trabalham sistematicamente com laranjas, para proteger os verdadeiros donos das responsabilidades penais, e operam uma poderosa máquina de sonegar e corromper - só na Furacão, figuram nomes de 80 policiais e três desembargadores envolvidos, além de um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob investigação.
A lista de laranjas é extensa. Um deles é visto pelos investigadores como a figura mais emblemática do grupo: o aposentado Gérsio Soares, de 77 anos. Até 2005, ele vivia modestamente com rendimentos anuais de R$15 mil, pagos pelo INSS. A partir daquele ano, tudo mudou: com um empréstimos de R$1,5 milhão, dinheiro do empresário Licínio Soares Bastos, ele se tornaria sócio de cinco bingos no Rio, entre eles o Barra Bingo.
Licínio Bastos, preso e processado pela Operação Furacão, é apontado como um dos chefões dos jogos de azar no estado.
Os responsáveis pela Furacão nunca localizaram ou ouviram Gérsio. Essa é uma das muitas frustrações da investigação. Outra, diante das evidências de manipulação de apostas, é não ter atribuição para agir. Cabe às autoridades federais investigar apenas a prática de contrabando, presente no mundo dos caça-níqueis e videobingos com a importação dos componentes eletrônicos. Já adulteração é responsabilidade da Polícia Civil.
Dois especialistas consultados pelo GLOBO, um deles perito policial, afirmam que as conversas não deixam dúvidas sobre a manipulação de resultados. As gravações aconteceram entre setembro de 2006 e abril de 2007.
- Dá para a gente sair amanhã, compadre, para angariar, para botar a draculinha na rua? - pergunta o empresário Jaime ao braço direito Adilsinho, em diálogo gravado no dia 5 de setembro de 2006.
A "draculinha" da conversa, interpretam os peritos, seria a máquina com programa alterado. Jaime, dono da distribuidora de máquinas Lucky Numbers, demonstra pressa em distribuir as peças no varejo.
- Aquela lá, que tá no seu Pepe (gerente de bingo), é rachada com a Betec (distribuidora). Mas essa draculinha é eu, você e ele. Só nós três. Vamos socar isso rápido.
Adilson dá as razões para seu chefe não querer dividir com muita gente os lucros obtidos com a "draculinha". A máquina é programada para render uma quantia certa (R$1 mil) a cada jornada de apostas, ainda que os apostadores acreditem que os resultados são aleatórios:
- Aquelas nossas (máquinas), tô esperando a Betec fechar. Só operam 14 pecinhas. Até que não foi tão ruim. Vão 14 mil (R$14 mil). Vão mil por máquina, redondinho.
No ano seguinte, outro diálogo de Jaime e Adilson revela como eles invadem o código-fonte da placa de computador para alterá-la e induzir os resultados:
- Estamos mudando a estratégia. Descompilar, ele conseguiu. Porém, compilar é muito difícil. Então, o que o Ilo (empresário do Sul do país) vai fazer? Copiar a matemática e jogar no jogo dele - explica Adilson.
Compilar é transformar a linguagem humana em "linguagem de máquina". Como a tentativa dos exploradores fracassa, eles optam por "copiar a matemática" e criar um novo programa.
Embora a PF e a Receita tenham em seus depósitos centenas de máquinas apreendidas, os peritos só as abrem para comprovar a origem do software e afirmar que foi contrabandeado. Feito isso, a máquina é destruída. Não há atribuição nem expertise para analisar e detectar fraudes.
- Para descobrir o vício, a adulteração, a polícia teria de manter um perito fazendo apostas na mesma máquina durante um ano e apurar os resultados - explicou um técnico.
Na polícia carioca, há um inquérito instaurado com este propósito.
oglobo.com.br/pais