Título: É preciso desformalizar o processo judicial
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 14/10/2009, O País, p. 10

Ministro do STJ lidera grupo que reformará Código de Processo Civil, "monstrengo" que, diz, alimenta lentidão do Judiciário

ENTREVISTA Luiz Fux

Menos formalismo e mais agilidade. Essas são as metas que o ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), promete perseguir como presidente da comissão de juristas que estudará a reforma do Código de Processo Civil no Senado. Desde que entrou em vigor, em 1973, o texto já sofreu 64 alterações. O resultado, para o ministro, é uma colcha de retalhos com mais de 1.200 artigos que contribui para a morosidade da Justiça no país. Carioca de 56 anos e professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Fux comanda hoje o primeiro encontro da comissão, que terá seis meses para entregar o anteprojeto do novo Código aos senadores: ¿ O processo não pode ser um monstrengo

Bernardo Mello Franco BRASÍLIA

O GLOBO: A principal crítica feita à Justiça brasileira é sobre a morosidade, os processos que nunca chegam ao fim. A reforma do Código de Processo Civil pode reduzir esse problema? LUIZ FUX: A morosidade está vinculada aos instrumentos que estão à disposição do Judiciário.

Se o processo é muito demorado, a resposta judicial também será. Isso cria, hoje, um certo desprestígio para o Judiciário.

No fim das contas, o que se diz é que a Justiça é muito demorada. Mas o juiz não cria um método da sua cabeça: ele segue a lei, o Código de Processo Civil. É preciso desformalizar o processo, transformá-lo num instrumento mais simples para o cidadão. A ideologia da reforma será valorizar a celeridade na prestação da Justiça.

Como transformar essa promessa em realidade? FUX: A simplificação da linguagem e dos procedimentos já vai tornar o processo menos técnico, o que facilita o acesso à Justiça.

Podemos desjudicializar determinadas questões, que passariam a ser resolvidas de forma extrajudicial. É o que já se propôs em relação ao divórcio, ao inventário. A tendência é levar para o Judiciário só as matérias em que há disputa, e não todas as etapas do rito processual.

Hoje os juizados especiais já preconizam isso: um procedimento simples, com linguagem acessível. Uma maneira menos formal de se obter a Justiça.

O que a reforma pode fazer para acelerar a tramitação desses processos? FUX: Muita coisa. Desde a eliminação de uma série de incidentes na primeira instância, para tornar o processo mais rápido, até a supressão de alguns recursos na segunda instância.

Também é preciso reforçar o prestígio da jurisprudência, que é uma maneira de se aplicar o princípio da isonomia.

Se as causas são iguais, as soluções devem ser iguais.

Isso já começou a ser feito nos tribunais superiores com as súmulas e a lei de recursos repetitivos. A ideia é reforçar esse tipo de instrumento? FUX: Exato. Quanto maior for o número de pessoas alcançadas pela decisão, mais eficiente será a prestação da Justiça. Se 10 milhões de pessoas têm uma reclamação sobre assinatura básica de TV a cabo, que se promova uma decisão cujo resultado vai valer para todas, sem a necessidade de haver 10 milhões de processos diferentes. Antes de fazer um trabalho técnico de mudança do Código, é importante termos uma ideologia. O processo vive um momento de supervalorização da celeridade, que se tornou mais importante que a segurança. O cidadão prefere uma Justiça mais rápida, ainda que ela seja menos segura quanto ao acerto da decisão.

Quais as causas que mais se repetem, atolando os tribunais? FUX: Há muitas causas repetitivas: fundo de garantia, assinatura básica, índice de correção monetária, impostos... Por isso, pretendo levar para a comissão a ideia de que as causas devem ser decididas com o maior espectro de alcance. A mesma solução deve valer para todo mundo. Hoje todos os juízes estão abarrotados porque há um número irrazoável de processos. Com a reforma, os juízes poderão dar mais qualidade às suas decisões.

O Código de Processo Civil está em vigor há 36 anos e já sofreu 64 alterações no Congresso.

Qual o resultado de tantas mudanças? FUX: O texto sofreu uma série de reformas esparsas. É preciso condensá-las, criar um sistema.

O novo Código Civil (de 2002) levou tempo para ser feito, mas hoje tem começo, meio e fim. Já o Código de Processo Civil sofreu uma série de modificações, promovidas por comissões completamente diferentes umas das outras. Agora é preciso juntar os pedaços do texto, que está retalhado.

Temos assistido, há mais de uma década, a reformas que praticamente acabaram com o processo original.

É possível reduzir a quantidade de recursos apresentados apenas com o objetivo de retardar o fim dos processos? FUX: O sistema atual oferece inúmeras oportunidades de manifestação das partes. Algumas delas poderiam ser suprimidas para que o processo fosse decidido mais rapidamente. Hoje cabe recurso a cada momento do processo. Por que não deixar isso só para o fim? Se um processo em primeiro grau recebe dez agravos, eles podem gerar mais dez embargos de declaração, dez recursos especiais e dez recursos extraordinários. Num mesmo processo, podemos chegar a 40 recursos! O sistema recursal brasileiro é muito pródigo.

A supressão de alguns recursos é um reclamo histórico, porque isso está se revelando um entrave para os tribunais.

l Que tipo de recurso pode ser limitado ou deixar de existir com a reforma? FUX: Os embargos de declaração, por exemplo, que são ilimitados.

E o que é pior: cada um deles interrompe o prazo para outro recurso. Por outro lado, temos um recurso ímpar, em que a parte pode recorrer se tiver um único voto isolado a favor dela: o embargo infringente.

Essa figura poderia cair.

O Código tem 1.220 artigos.

É preciso reduzi-lo? FUX: Sim. Vou propor o enxugamento de partes que hoje têm aplicação prática muito pequena.

A ação declaratória incidental, por exemplo: ninguém sabe o que é, porque não se usa. Outros procedimentos têm que ser tratados extrajudicialmente.

Se você faz um inventário ou um divórcio no cartório, está resolvido o problema. Por que o juiz tem que interferir nisso? A Justiça tem que ser percebida pelo povo. O processo não pode ser um monstrengo em que há uma luta desigual entre partes diferentes. O resultado deve beneficiar a parte que tem razão, e não a que sabe manipulá-lo melhor.

Há polêmicas no caminho da reforma? Quais são os interesses que devem se chocar nessa discussão? FUX: O magistrado pretende que o processo seja o mais célere possível, com a eliminação de uma série de incidentes.

Por outro lado, a advocacia entende que a eliminação desses incidentes foge ao que chamam de garantismo. Teremos que conciliar esses valores: celeridade e segurança