Título: A Suprema Corte e a saúde dos brasileiros
Autor: Pinotti, José Aristodemo
Fonte: Correio Braziliense, 01/06/2009, Opinião, p. 15

Secretário da Secretaria Municipal da Mulher (São Paulo), professor emérito da USP e da Unicamp, membro da Academia Nacional de Medicina.

O ministro José Gomes Temporão, a quem aprecio pela visão de uma saúde equitativa e por ter sido discípulo do meu amigo Sérgio Arouca, publica na Folha de S. Paulo, de 26/4/2009, artigo esperançoso de que o Supremo Tribunal Federal (STF) possa solucionar a questão da judicialização dos medicamentos, incômoda à magistratura e aos cofres da saúde. Isso será feito, mais uma vez, na vicariância de um Legislativo inerte e gestão eficiente. Mas o STF foi mais longe e examinará o direito do cidadão à saúde, fraudes e distorções do sistema e desvios constitucionais. Acertou, pois é disso que estamos necessitando. Convidaram-me, irei , mas quero iniciar aqui com um histórico da nossa saúde e suas principais e intocáveis megafraudes, que se acumulam.

Após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se um antissistema de saúde: santas casas ajudadas pela comunidade e médicos atendendo a desvalidos; Ministério da Saúde e estados fazendo saúde pública com programas verticalizados de doenças infecciosas e o Inamps, que congregou os inúmeros IAPs e cuidava do diagnóstico e tratamento, tudo sem integração e com resultados pobres.

Nos anos 1980, com o enfraquecimento do regime militar e face aos ventos que sopraram do welfare state europeu e seus sistemas nacionais de saúde, os pensadores de saúde brasileiros ganharam força para defender um sistema nacional equitativo e, desde o início do governo Sarney, foi possível implantar modelos nessa direção, como o SUDS em São Paulo e outros, cujos resultados de cobertura, acesso, acolhimento foram excelentes e começaram a se multiplicar no país. Realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o SUS e seus princípios práticos entraram na Constituição. Foi a década mais rica e produtiva.

A partir dos anos 1990, inicia-se esse processo entrópico, monetarista, neoliberal, que estoura, agora, nessa crise econômica que vivemos. No seu bojo, preponderou a intenção clara de privatizar, com objetivos de lucro, as grandes políticas públicas, como educação, previdência e saúde. As emendas constitucionais são aprovadas, resistindo a da saúde, a única derrubada, mas não se consegue resistir às pressões. A contrarreforma privatizante é avassaladora. O Congresso aprovou em 1.996, com total apoio do governo, a malfadada Lei das Patentes, razão fundamental desse processo de judicialização, sem as salvaguardas, recomendadas internacionalmente, de fabricação local e interregno, destruindo a indústria farmoquímica brasileira e nos tornando dependentes. Hoje, compramos produtos da Índia, onde há mais de 1.200 indústrias farmoquímicas.

A saúde pública se privatiza legal e ilegalmente, criando o que existe hoje: uma saúde pobre para os pobres remanescentes do SUS e uma saúde no mercado para quem tem quatro centavos para pagá-la e fugir das filas, da espera e dos maus-tratos; a maior propaganda para a aquisição dos planos de saúde, comprados por 45 milhões de brasileiros. Os governos tentam escamotear politicamente, citando grandes números de atendimento, retornando às formas campanhistas demagógicas, falando de mortalidade infantil que cai inercialmente, sem compará-la com os demais países da América Latina, que a têm 30% menor. Esconde a mortalidade materna, 20 vezes maior que a dos países que cuidam da saúde, aproveitando-se da retirada total da classe média do SUS, que tinha controle social sobre o mesmo, pois os que lá ficaram ainda entendem a saúde como favor e não um direito. E mais: os que dirigem o sistema não o utilizam.

O Executivo, o Legislativo, as estatais compram para si planos de saúde e gastam com isso (só o governo federal e sete estatais) mais de R$ 10 bilhões por ano. A ANS e o Congresso permitem, há 10 anos, ao arrepio da Constituição e da Lei nº 9.656, que os planos cobrem do usuário e utilizem, para procedimentos mais caros, o sistema público, sem ressarci-lo, furto comprovado com auditorias repetidas do Tribunal de Contas da União, que chega a R$ 2 bilhões por ano. Por dentro do SUS, nessa ânsia de parasitar e transferir dinheiro público para o setor privado, terceiriza-se tudo, desde lavanderia, cozinha, segurança, até serviços especializados de anestesia, diálise, clínica médica, cirúrgica e a própria direção de hospitais, sangrando o público e abandonando a possibilidade de uma política de Estado da saúde, base estratégica de um sistema único e equitativo, que, em análises internacionais consistentes, tem sido os de melhores resultados e custo/benefício. Cito Inglaterra, Canadá e Taiwan, países absolutamente capitalistas, com sistemas de saúde socialistas e excelentes resultados. É a hora da verdade, aberta ao país pela nossa Suprema Corte. Vamos aproveitá-la.