Título: Trágico e previsível
Autor:
Fonte: O Globo, 23/10/2009, Opinião, p. 6

A violência que explodiu nos últimos dias no Rio evidencia que, tanto quanto a subjugação de comunidades pelo crime organizado, o poder de fogo dos bandidos é uma realidade a merecer a atenção efetiva do poder público. Os criminosos impõem seu domínio pela violência, e esta se escora num arsenal que, não raro, os criminosos exibem como fator de intimidação contra moradores, de bravata contra as forças da ordem, e de enfrentamento mesmo.

Cortar o suprimento de armas é imperioso pressuposto para sufocar os bandidos e evitar, por exemplo, afrontas como a do último fim de semana, quando um helicóptero da polícia foi abatido durante operação contra traficantes na Zona Norte. O diagnóstico é óbvio, mas a tarefa não é fácil, e tudo se grava por causa de falhas na atuação do poder público.

Dias atrás, ao divulgarem um levantamento do controle de armas do país, a Câmara dos Deputados e o Viva Rio tornaram pública uma preocupante constatação: a maioria dos estados não tem compromisso com o desarmamento e a polícia, em geral, é despreparada. A pesquisa avalia que existam no país 17,6 milhões de armas de fogo em circulação. Dessas, 10,1 milhões estão em situação irregular, com 6 milhões em poder de bandidos.

É um arsenal nada desprezível, cuja irrigação é enormemente facilitada pela omissão ou pela cumplicidade dos órgãos federais encarregados da fiscalização das rotas por onde transitam os artefatos da morte, como fronteiras e rodovias. Em recente entrevista à CBN, o coordenador do projeto de controle de armas do Viva Rio, Antônio Rangel Bandeira, fez uma crua radiografia do abastecimento de armas para os traficantes: ¿A Baía de Guanabara é um queijo suíço. À noite, vira um shopping de contrabando, com mercadorias descarregadas na Favela da Maré. Todo mundo sabe disso.¿ Segundo, ele, a Polícia Federal tem apenas uma lancha para patrulhar toda aquela área da costa, e ainda assim só funciona no horário de expediente normal. Inaceitável.

A isso se juntam as dificuldades de controlar milhares de quilômetros de fronteiras no país ¿ o que poderia ser compensado por uma eficaz, mas de resto inexistente, fiscalização das rodovias federais.

Adicionalmente, nomeações políticas para órgãos encarregados de tal controle levam à obviedade de que falta profissionalismo e sobram interesses inconfessáveis num dispositivo que supostamente deveria funcionar em defesa da sociedade.

De tudo isso resulta o fortalecimento do poder de fogo do crime, em detrimento da segurança pública ¿ do que os acontecimentos desta semana no Rio são testemunho tão trágico quanto previsível.