Título: Lavagem de dinheiro no varejo
Autor: Bottari, Elenilce
Fonte: O Globo, 08/11/2009, Rio, p. 28

Polícia mira agora nos "laranjas" do tráfico; inquéritos já investigam 150 suspeitos

A apreensão de uma moto Honda 600F, modelo Hornet, no início do ano, durante uma operação na Favela da Rocinha, foi o fio do novelo para mais um inquérito sobre lavagem de dinheiro do tráfico de drogas. O veículo foi comprado numa concessionária na Tijuca e estava registrado em nome de uma servidora pública, que não tem carteira de habilitação e jamais apreendeu a dirigir. Mesmo assim, era a ¿dona¿ da moto, avaliada em mais de R$ 30 mil, mas que era usada pelo traficante Leandro Nunes Botelho, o Scooby, chefe do Morro dos Macacos. A favela em Vila Isabel e a Rocinha são dominadas pela mesma facção.

Com 19.501 processos sobre tráfico de drogas em andamento no Tribunal de Justiça do estado (10.189 deles instaurados este ano), operações policiais quase que diárias em favelas e uma média de 600 prisões e 80 mortes por mês, autoridades das áreas de segurança e Justiça mudaram sua visão sobre a força das quadrilhas.

Tuma: `Temos que quebrar a firma

Nos últimos anos, o tráfico no Rio atingiu o status de organização criminosa e, como tal, começa a ser combatido.

¿ O tráfico é hoje uma atividade econômica que funciona como uma estrutura empresarial. Em uma empresa se você demite 20, no dia seguinte já tem outros 20 para serem contratados. No tráfico, a reposição é muito rápida. Por isso, não adianta apenas combater os criminosos. Temos que atacar a estrutura financeira deles. Temos que quebrar a firma. E isso passa pelo combate ao crime de lavagem de dinheiro ¿ diz o presidente da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) e secretário Nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior.

Há nove dias, a Polícia Civil anunciou a prisão de 23 pessoas, acusadas

de crime de lavagem de dinheiro para a quadrilha que domina a venda de drogas no Morro do Borel, na Tijuca.

Esta é apenas uma das cerca de 60 comunidades dominadas pela maior facção criminosa da cidade, que controla também os complexos da Penha e do Alemão. Inquéritos ¿ que estão sendo acompanhados pela Coordenadoria de Tecnologia em Investigação e Análise no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro do Ministério Público estadual ¿ apontam o envolvimento de outras 150 pessoas com quadrilhas de traficantes, muitas delas sem antecedentes criminais ou sem qualquer ligação direta com a venda de drogas.

Por determinação do chefe de Polícia Civil, delegado Alan Turnowski, as investigações vão focar agora para os chamados colaboradores. Os ¿laranjas¿ do tráfico são parentes, moradores e comerciantes de dentro e de fora da favela que emprestam seus nomes para ajudar bandidos a transferir quantias que serão usadas na compra de armas, no pagamento de propinas a autoridades e no enriquecimento dos chefes das quadrilhas, muitos deles, ainda desconhecidos da polícia.

Esses colaboradores ¿ grandes ou pequenos ¿ responderão por crime de lavagem de dinheiro e associação para o tráfico, garante a polícia.

Segundo o coordenador do Núcleo de combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil, delegado Flávio Porto, a maioria das quadrilhas ainda mantém um esquema rudimentar de lavagem, usando parentes e outros moradores ou mesmo abrindo pequenos estabelecimentos comerciais nas favelas, quase sempre ilegais, como farmácias, distribuidores de gás, academias de ginásticas, cabelereiros. Outras têm estrutura bem mais desenvolvida: ¿ Algumas quadrilhas utilizam empresas legais, concessionárias e até indústrias.

Elas pulverizam o dinheiro conseguido com a venda de drogas em várias pequenas contas bancárias, que irão transferir o dinheiro a terceiros para que estes apliquem em lojas e empresas, misturando assim o dinheiro lícito com o ilícito. É uma forma de ocultar patrimônio comum ao crime organizado ¿ explicou Porto.

Representante do Ministério Público Federal do Rio no Grupo de Trabalho de Lavagem de Dinheiro, o procurador da República Artur Gueiros disse que as classes média e média alta estão entre os principais responsáveis pela estruturação das facções criminosas que atuam no Rio: ¿ Sempre se falou muito na responsabilidade do usuário. No entanto, são esses colaboradores que mais contribuem para o agravamento do crime no Rio. Nem todos gostam de drogas, mas todo mundo gosta de dinheiro.

Assim, muitas vezes no entorno da comunidade ou mesmo distante delas, esses comerciantes legais vão usar recursos do tráfico para abrir ou investir em agências de automóveis, pizzarias, lojas de produtos eletrônicos, locadoras, academias de ginástica.

Essa ocultação de riqueza é um crime grave que precisa ser combatido com o mesmo rigor.

Para o promotor Francisco de Assis, coordenador de Tecnologia no Combate à Corrupção e à Lavagem, além de quebrar a estrutura financeira das quadrilhas, o combate à lavagem de dinheiro é a melhor forma de se chegar aos verdadeiros chefes do tráfico de drogas: ¿ É um crime complexo, mais difícil de se investigar, mas, com certeza, leva ao topo da pirâmide. Como os americanos dizem ¿follow the money¿ (¿siga o dinheiro¿, expressão usada pelo ex-diretor do FBI Mark Felt durante as investigações do caso Watergate). É a melhor forma de se chegar aos chefões

Jurista: `É uma questão federal¿

Para o ex-secretário Nacional Antidrogas e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone que estuda o crime organizado, o jurista Walter Maierowitch, as quadrilhas de traficantes do Rio afrontam o estado democrático de direito, os direitos constitucionais e os direitos humanos: ¿ Não é mais um problema de segurança pública. Está em um patamar acima da questão estadual. É uma questão federal. No Brasil, o tráfico ainda é uma pré-máfia, porque já tem alguma organização e uma estrutura rudimentar de lavagem de dinheiro.

Se o governo federal não trabalhar com o estadual para quebrar financeiramente esta estrutura, essas facções se transformarão em máfias