Título: O dominó da liberdade
Autor: Magalhães-Ruether, Graça
Fonte: O Globo, 10/11/2009, O Mundo, p. 25

Simulação de queda do Muro marca a data do fim da divisão de Berlim diante milhares de pessoas

20 ANOS DEPOIS: Milhares de pessoas assistem a um show de fogos de artifício sobre o Portão de Brandemburgo. Ao lado, Merkel segura uma foto do dia da queda com Gorbachev e Walesa

Mais de cem mil berlinenses, europeus e outros visitantes comemoraram ontem, ao lado de líderes de 30 países, os 20 anos da queda do Muro que dividia a capital alemã. Enquanto uma fileira de pedaços do muro feitos de espuma era derrubada como dominó, milhares de pessoas agasalhadas se protegiam da chuva e do frio com guarda-chuvas para acompanhar de perto o evento. O ponto alto da festa da liberdade ocorreu junto ao Portão de Brandemburgo, ao som de Ludwig van Beethoven e Richard Wagner e sob luz de fogos de artifício.

As comemorações começaram pela manhã. Com um passeio a pé na ponte de Bornholm, que há 20 anos era uma das oito passagens de fronteira entre as duas partes de Berlim, a chanceler federal alemã Angela Merkel lembrou ontem o passeio que fez em 1989, quando pela primeira vez teve acesso livre à parte ocidental de Berlim. Acompanhada de organizadores dos protestos que pressionaram pelo fim da barreira, e dos ex-presidentes Mikhail Gorbachev, da União Soviética, e Lech Walesa, da Polônia, Merkel afirmou que a queda do Muro foi o ¿momento mais feliz¿ da sua vida e também ¿a hora mais feliz da história alemã e europeia¿.

¿ Hoje cresce uma nova geração que é aberta para o mundo. Valeu a pena lutar ¿ afirmou Merkel.

Pouco depois de participar de uma cerimônia em homenagem às vítimas, que foram mortas ao tentar fugir para o ocidente, Karin Gueffroy disse que para ela a queda do Muro ocorreu tarde demais, mas assim mesmo foi importante para trazer Justiça e para que o assassino do seu filho Chris, de 20 anos ¿ última pessoa morta ao tentar ultrapassar a fronteira, em fevereiro de 1989 ¿ fosse julgado.

Diferenças são esquecidas na festa

Depois de ouvir de Merkel que ¿muitos sofreram antes da chegada da liberdade¿, Gueffroy lamentou que a memória das vítimas não tenha sido acentuada o bastante nas comemorações:

¿ É importante nunca esquecermos as pessoas que morreram ao tentar ultrapassar o Muro.

Em toda a fronteira entre as duas Alemanhas morreram 1.347 pessoas ao tentar fugir para o Ocidente. Marianne Birthler, encarregada da agência de esclarecimento dos crimes da polícia secreta da Alemanha Oriental (a Stasi), acredita que um dos fatores que contribuem para o chamado ¿muro nas cabeças¿, a divisão psicológica da Alemanha que ainda existiria, foi a falta de perseguição sistemática dos responsáveis pelos crimes do regime:

¿ Muitas pessoas subestimam os crimes do regime. Há até quem diga que a Alemanha Oriental era um estado de direito, o que não foi.

Quando o Muro caiu de novo, na forma de gigantescas pedras de dominó coloridas, dispostas numa extensão de 1,3 km, houve menos espaço para melancolia. A fileira de pedras, instalada no mesmo lugar onde existia o Muro real, foi derrubada com um impulso inicial de Walesa.

Roland Jahn, que chegou a ser preso nos anos 80 por usar o símbolo do Solidariedade de Walesa, admite que Berlim continua dividida na mentalidade de muitos dos seus moradores:

¿ Em muitos aspectos, houve nivelamento, mas o processo de reunificação ainda não foi concluído.

No final da ¿festa da liberdade¿, quando o tenor Plácido Domingo cantou ¿Berliner Luft¿ (ar berlinense que tem fama de ser perfumado), não havia mais lugar para nenhum tipo de crítica. Nesse momento, pelo menos no lugar da festa, Berlim estava finalmente integralmente reunificada.

Ao contrário de muitos alemães que fazem a diferença entre ¿ossis¿ e ¿wessis¿ (ossis de ost, leste, e wessis, de west, oeste), Mariane Birthler acentuou, no final da festa: ¿Eu sou berlinense!¿ Não interessa se é do Leste ou do Oeste.