Título: Um contrato nacional a manter
Autor: Feuerwerker , Alon
Fonte: Correio Braziliense, 28/05/2009, Política, p. 6

Da derrota política do regime de exceção resultou um acordo de transição. A questão é saber se ele deve ser mantido, agora que se aproxima o final do governo Lula

A expressão ¿projeto de poder¿ não me desce bem. Penso que na democracia, partidos e grupos não devem ter projetos de poder, mas projetos eleitorais. Ganha-se a eleição, exerce-se o mandato (ou dois) e passa-se o bastão ao sucessor. Do mesmo partido ou de outro. Esse é o mecanismo desejável, ainda que nem sempre possível. Países eventualmente são arrastados ao primarismo político, em determinadas situações históricas. Primarismo que acaba se transformando num estorvo quando a nação atinge certo grau de desenvolvimento e quer avançar mais.

Entre nós, a valorização da alternância no poder é algo recente. A ruptura institucional de 1964 deveu-se também a que nem a direita nem a esquerda estavam muito aí para a democracia representativa. A primeira desconfiava que o sistema criado após o colapso do Estado Novo acabaria conduzindo o país a uma ditadura da segunda. E a segunda via no modelo pós-1945 um limitador institucional de reformas que deveriam implantar a justiça social e a soberania nacional. O resultado desse descaso bilateral com a democracia é conhecido: 20 anos de liberdade tolhida.

A direita deu o golpe, tomou o poder em 1964 e pretendeu suprimir a esquerda do processo político. Isso precipitou na esquerda a sedimentação da influência das revoluções chinesa e cubana, do que resultaram as guerrilhas dos anos 1960 e 70. O resultado dessa escolha também é conhecido: a completa derrota militar da esquerda, numa guerra que ¿ como todas as guerras ¿ esteve longe de ser bonita. E cujos efeitos colaterais atingiram quem nada tinha a ver com a luta armada. Como por exemplo o Partido Comunista Brasileiro. O PCB na época queria mesmo era ampliar sua influência no único partido permitido da oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e o regime aproveitou o ambiente para barrar, na base da repressão, essa escalada.

Uns por convicção, outros pelas circunstâncias (a derrota militar), a esquerda nos anos 70 acabou empurrada para a luta democrática de massas, com ênfase na organização dos movimentos sociais, a começar do movimento estudantil. Aqui também o resultado é conhecido: a derrota política do regime de exceção, do que resultou um contrato nacional baseado em alguns pontos: anistia ampla, assembleia constituinte, liberdade político-partidária, liberdade de organização social, liberdade de imprensa e ausência de veto a que qualquer força política participe do governo ¿ uma outra maneira de descrever o respeito à alternância no poder.

Alguns dos principais vetores na formação do PT não foram protagonistas da elaboração desse contrato. Na segunda metade dos anos 70, os sobreviventes da luta armada estavam no exílio, na prisão ou politicamente neutralizados. E o assim chamado novo sindicalismo só viria a emergir de fato após a revogação do AI-5, em dezembro de 1978. Revogação que resultou da resistência democrática desarmada, do MDB e do movimento social, na época majoritariamente estudantil.

A especulação em torno do terceiro mandato consecutivo para Luiz Inácio Lula da Silva é alimentada por duas artérias. Há o temor de quem está bem alojado na administração. E há a tentação de vender à sociedade brasileira que só um governo liderado pelo PT seria capaz de defender o interesse nacional, que qualquer outro resultado eleitoral em 2010 seria portanto uma ameaça ao Brasil. Nas nossas atuais circunstâncias, o segundo vetor representa na prática a tentativa de negar a possibilidade de alternância no poder. Negar uma cláusula pétrea do contrato político produzido na transição democrática.

Verdade que o contrato já tem algumas rasuras. Após a queda de Fernando Collor, os adversários do PT amputaram um ano dos cinco do mandato presidencial, atemorizados pela possível eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas como a vitória em 1994 acabou no colo de Fernando Henrique Cardoso, aprovaram uma reeleição. Apesar do casuísmo, porém, o sistema acabou vingando. Melhor não mexer nele. Cada macaco no seu galho, cada país com seu modelo. Se o nosso está indo bem, por que abrir as portas ao desconhecido?

Pode-se defender que trocar governantes não garante a democracia. No período militar, por exemplo, não havia reeleição. E no parlamentarismo o governante fica o quanto pode, sem prazo determinado. Mas fazer esse debate em torno de teses abstratas da ciência política seria um erro. A questão é saber se o contrato da transição democrática no Brasil deve ser mantido ou não da maneira como está. Especialmente em dois pontos: a anistia ampla e a possibilidade real de alternância no poder. Esse é o debate.