Título: Esperança contra cegueira
Autor: Marinho, Antônio
Fonte: O Globo, 29/11/2009, Ciência, p. 45

Pacientes começarão nos EUA primeiro teste de células-tronco embrionárias. Rio terá laboratório

STEVENS no LaNCE. O laboratório carioca será o primeiro da América Latina a pesquisar o uso de células derivadas de embriões (detalhes) em doenças crônicas

Já faz uma década desde que cientistas levantaram a hipótese de que células-tronco de embriões humanos poderiam ser empregadas para produzir tecidos e tratar doenças incuráveis. Agora estes pesquisadores estão prestes a confirmar que elas funcionam. Nos Estados Unidos, 12 pessoas que sofrem de perda de visão progressiva podem, em poucos meses, se tornar os primeiros pacientes no mundo a se beneficiar do transplante de células de embriões humanos, descartados na fertilização in vitro. No Rio, o Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ também dá passos firmes nessa direção, com a inauguração, amanhã, do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE), o primeiro da América Latina a dispor desse material em escala maior.

O estudo com pacientes que sofrem de um tipo de degeneração macular, que causa perda gradual da visão, deve começar em março. A empresa Advanced Cell Technology (ACT), em Massachusetts ¿ cujo diretor-científico é Robert Lanza, um dos pioneiros na pesquisa com células-tronco ¿ está confiante que a FDA, órgão que controla drogas e alimentos nos EUA, vai autorizar os testes.

¿ Na fase pré-clínica, em animais, não vimos efeito adverso, e as nossas células são mais de 99,9% puras ¿ diz Lanza.

Essa técnica é polêmica porque grupos pró-vida se opõem ao uso de embriões humanos em investigação médica. Mas os cientistas afirmam que os benefícios podem revolucionar o tratamento de doenças incuráveis, de Parkinson a males cardíacos.

As células-tronco derivadas de embriões humanos de poucos dias têm capacidade de se transformar em qualquer tecido. A esperança é que elas possam ser usadas para reparar órgãos com um método relativamente simples. Os pesquisadores da ACT querem tratar a degeneração macular de Stargardt, que destrói a parte central da retina, envolvida no reconhecimento de rostos e palavras. E pretendem entrar com pedido para tratar a cegueira relacionada à idade.

No caso da doença ocular, a equipe de Lanza usa células-tronco para recriar células essenciais para os fotorreceptores da visão, que muitas vezes são as primeiras a morrer. Uma única célula de um embrião humano foi necessária para produzir a linhagem que a equipe cultivou em laboratório. Banhando as células num meio de mensageiros químicos, foi possível produzir células maduras do epitélio pigmentar da retina. Nos testes, os transplantes de células humanas em animais (ratos) com degeneração macular resultou em 100% de melhora na visão, sem efeitos colaterais, disse Lanza. Os voluntários receberão drogas imunossupressoras para evitar a rejeição.

A experiência da ACT será, provavelmente, a primeira no mundo, porque a única outra empresa (a Geron) que havia recebido autorização da FDA para pesquisa com células-tronco embrionárias em casos de lesões da medula teve que adiar seu ensaio, por problemas de segurança nos testes em animais (eles apresentaram cistos). Há outro protocolo na University College de Londres para degeneração macular utilizando células de embrião, mas este só deve começar em dois anos.

¿ É complexo, um processo que ninguém fez antes ¿ disse Lanza. ¿ Não queremos que nada dê errado, mas alguém tem que dar o primeiro passo.

Brasil vai produzir próprio material

Um extenso trabalho foi feito para garantir que as células derivadas de embriões tenham alta qualidade. A ACT apresentou nove volumes de dados à FDA, respondendo às preocupações sobre a pureza e a possibilidade de que as célula possam causar câncer:

¿ A pesquisa precisa muito de um grande sucesso clínico. Estamos esperançosos de que as células serão eficazes em humanos.

No Rio, o neurocientista Stevens Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas, está animado com o novo LaNCE, associado à Rede Nacional de Terapia Celular do DECIT/Ministério da Saúde, em parceria com BNDES, CNPq e Finep. O laboratório terá condições de produzir células embrionárias humanas com a qualidade necessária para transplantes, acompanhando os avanços mundiais na área. Isto não significa que os testes com essas células já têm data marcada para começar no Brasil:

¿ Às vezes a ciência caminha num ritmo mais lento do que a sociedade desejaria, porém mais prudente. E não se pode dizer que um tipo de célula resolverá todos os problemas ¿ explica Rehen.

Segundo o neurocientista, a maior dificuldade nesse tipo de pesquisa é garantir que não haverá a formação de tumores após o transplante, ou seja, confirmar 100% de pureza para o tipo celular desejado antes do procedimento. O risco de rejeição é um desafio menor, pois, assim como acontece com os transplantes convencionais, pode-se recorrer aos imunossupressores. Isso não significa que evitá-los não seja o ideal e uma meta a ser alcançada, afirma.

O LaNCE é um dos oito laboratórios de terapia celular do país. O seu foco será a pesquisa básica, pré-clínica e a preparação e cultivo de células-tronco embrionárias em condições de boas práticas. Conta com 26 profissionais, incluindo área administrativa.

Eles vão trabalhar com células embrionárias que vieram dos Estados Unidos e pluripotentes (têm capacidade de se transformar em diferentes tecidos) induzidas (iPS), desenvolvidas no Brasil: na UFRJ e na USP. Elas podem ser obtidas a partir de células da pele. Com o LaNCE, o Brasil tem condições de fazer novos estudos e passa a produzir seu próprio material, inclusive insumos, que serão distribuídos a laboratórios.

¿Temos pesquisa de mal de Parkinson, por exemplo, e podemos reprogramar células para estudar modelos doenças in vitro, o que pode ajudar a produzir novas drogas ¿ comenta Rehen.