Título: Euforia e tragédia
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 06/12/2009, Economia, p. 28

O Brasil vive uma dualidade. A economia em um momento de euforia, a política no meio de uma tragédia. A superação da crise econômica internacional, a retomada do crescimento, a confirmação de que valeu a pena manter, governo após governo, a moeda estável tornam a economia um campo em hora de colheita. A política revolta, confunde, desanima.

Não existem compartimentos estanques. Tudo é o mesmo Brasil. Um lado pode contaminar o outro. Não se vive com duas metades em momentos tão diferentes. Os investidores estão vindo para o país, atrás dos ganhos proporcionados pelos bons indicadores e as vantagens brasileiras em relação aos competidores. Mas os que realmente farão parte do desenvolvimento do país serão os que vierem com intenção de ficar. A estes, a fama de corrupção endêmica assusta.

Os que não se preocupam com isso são os donos do dinheiro oportunista que vêm atrás de rentabilidade alta nos títulos públicos e um salto ocasional na bolsa. Um país com bom desempenho econômico mas vivendo num pântano político atrairá mais os aventureiros que os investidores de longo prazo.

As cenas do dinheiro na cueca, nas meias, nos bolsos, na bolsa ¿ nas ¿vestimentas¿ dos sem-pasta ¿ envergonham os brasileiros e atraem a curiosidade externa.

O caso da distribuição de dinheiro pelo governo do DEM em Brasília confirma as caricaturas sobre o Brasil, ele parece aquele país exótico, uma república das bananas.

Não é o primeiro caso, teme-se que não seja o último.

Pode virar também parte da cultura do mundo dos negócios. Se, em todas as compras governamentais, um empresário tiver que ir à sala de um Durval Barbosa para acertar o preço da propina, vão proliferar no país os empresários com esta expertise. Todas as outras qualidades da empresa ficarão em segundo plano: a eficiência, o cumprimento dos contratos, o controle dos custos, a boa gerência, os valores corporativos. Nada será relevante, porque a escolha será decidida em favor do competidor que estiver disposto a contribuir mais para o esquema da vez.

As compras governamentais movimentam uma parte grande da economia. Se em cada governo ¿ federal, estadual, municipal ¿ houver um esquema semelhante, as empresas fornecedoras serão apenas as que tiverem a habilidade de encher com fartura e rapidez o bolso dos corruptos.

A corrupção distorce a economia; produz perdas e danos. Virando uma prática, por ser um crime sem castigo, vai contaminar até os negócios entre o setor privado. Vira realmente endêmica, parte da paisagem.

Há também custos mais intangíveis, como a perda da confiança da população na democracia representativa.

¿ Você já votou nulo? ¿ Perguntou o motorista de táxi que me trouxe ao jornal.

¿ Na ditadura, votei nulo ¿ disse.

¿ Eu nunca, mas na próxima eleição votarei nulo.

Não confio em mais ninguém.

Na minha cidade, de 25 mil habitantes, um prefeito que todo mundo sabia que era bandido ficou oito anos e saiu rico. Se acontece isso numa cidade pequena, imagina nas grandes.

Esse sentimento é o que se deve temer. Ele esvazia a democracia.

Fica oca, apenas com os rituais, sem o conteúdo mais profundo que é a escolha de pessoas que representem a população.

A economia vivia, anos atrás, um momento de devastação.

A inflação corrompia o valor da moeda, retirava de consumidores e poupadores a confiança em qualquer valor monetário.

Consertar aquela desordem tomou muito tempo dos brasileiros. Depois, foram sendo fincadas as bases das políticas cambial, fiscal, monetária, que permitiram ao país atravessar esta crise perdendo um ano de crescimento, mas mantendose na superfície onde outros naufragavam. A continuidade das bases da política anti-inflacionária, no governo atual, mostrou que a estabilidade era uma escolha do país e não de um partido, uma administração.

Nada está garantido.

Algumas mudanças, na área fiscal principalmente, são perigosas e podem levar a crises no futuro, mas a euforia que se vive hoje não foi uma conquista de um dia, de um ano, de um governo.

Foi uma construção lenta e determinada.

O país vive hoje de escândalo em escândalo na política, como vivia de crise em crise na economia. Nada impede que se execute a tarefa da estabilização política.

Mas ela não será resultado de uma reforma política ou do aumento do financiamento público de campanha. Não foi a falta de uma lei determinando o financiamento público exclusivo que produziu a orgia de propina em Brasília. Aquilo nasceu principalmente da certeza da impunidade, e se combate com o máximo de transparência e pesadas punições.

O governador José Roberto Arruda manteve em cargo de confiança Durval Barbosa, uma pessoa que vinha do governo anterior e que já tinha dezenas de processos por corrupção. Agora que Barbosa passou a colaborar com a Justiça, ele é definido por Arruda como herança maldita. Não era maldita quando distribuía dinheiro para as bases, quando era seu assessor especial, quando foi nomeado secretário de Relações Institucionais. A maldição ocorreu apenas quando ele com suas fitas foi até a Polícia Federal. O que ele fez expõe com nudez frontal a corrupção na capital do país e ilustra o que pode estar ocorrendo em vários outros gabinetes do Brasil nesta preparação da campanha eleitoral do ano que vem.

As cenas que o Brasil viu, estarrecido, na semana passada são de um país sem eira nem beira; sem lei, sem limites.

Nada do que se viu ou do que se pode depreender das conversas lembra um país que, pela força da sua economia, está agora entrando no clube dos grandes.