Título: Um quadro desolador
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 29/05/2009, Brasil, p. 10

Pesquisa do Ministério da Saúde revela que hospitais psiquiátricos remanescentes penam com graves deficiências de pessoal e com péssimos projetos terapêuticos para desinternação dos pacientes

-------------------------------------------------------------------------------- Renata Mariz

Iano Andrade/CB/D.A Press Ma blitz do Ministério da Saúde nos hospitais psiquiátricos, feita desde 2002 a cada 18 meses, revela um quadro desolador. Nos cinco itens considerados mais importantes na verificação, a avaliação média é de regular para baixo. Para cima, há os conceitos bom e excelente ¿ pouco presentes na edição mais atualizada do levantamento, intitulado Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (Pnash/Psiquiatria), realizado entre 2006 e 2007 (leia quadro). Para se ter ideia, 67% das instituições ganharam menções, no que diz respeito aos recursos humanos, entre regular, ruim ou péssimo. Mesmas notas receberam 64% dos hospitais em outro fator primordial para a recuperação do paciente, o projeto terapêutico visando a desinternação.

¿O Pnash faz exigências mínimas da qualidade que o hospital deve ter. Ainda assim, a situação é complicada¿, diz Pedro Gabriel, coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde. Apesar de ser uma avaliação baseada em normas técnicas, sobram críticas a respeito dos critérios utilizados. ¿Como é que uma comissão vem fazer vistoria em um hospital psiquiátrico sem que haja um psiquiatra na equipe?¿, indaga Gilberto Brofman, diretor do Hospital São Pedro, em Porto Alegre (RS), um dos grandes manicômios do século passado ¿ e ainda hoje uma enorme estrutura.

Consultora do Ministério da Saúde, Karime Porto retruca. ¿A presença do psiquiatra não é uma obrigatoriedade, embora ele integre algumas equipes. O olhar de um enfermeiro, às vezes, é mais valioso que de qualquer outro profissional¿, diz ela. Para Brofman, o Pnash, assim como toda a reforma psiquiátrica, está carregado de ideologia. ¿Demonizaram a internação como se o doente mental não precisasse de cuidados integrais, em determinados momentos, assim como qualquer paciente¿, ataca.

O baixo valor da diária repassada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é outra queixa comum dos dirigentes de hospitais. ¿Hoje, pagam R$ 33 por paciente internado. Como querem que funcionemos bem? Estamos em vias de fechar as portas¿, reclama Jurema Pires, uma das proprietárias do Sanatório São Paulo, localizado em Salvador (BA), que em menos de um ano extinguiu 84 leitos. A unidade, única particular credenciada ao SUS na capital baiana, funciona em alas que muito lembram os pavilhões dos antigos manicômios. Janelas quebradas e infiltrações nas paredes são comuns.

Pouco menos sombrio, mas não totalmente salubre, é o cenário que abriga pacientes de convênios médicos ou particulares no São Paulo. ¿Apesar de ficarem em espaços físicos separados, não fazemos distinção entre eles e os do SUS¿, garante Jurema. Ela reconhece, entretanto, que ao menos na medicação há diferenciação. ¿Claro que os particulares têm acesso a remédios mais modernos, porque o convênio paga¿, afirma a diretora. Ela não autorizou a reportagem a registrar imagens do hospital, que em 2003 foi ameaçado de descredenciamento.

Fragilidades As mais graves fragilidades apontadas pelo Pnash 2006/2007 ¿ na área de recursos humanos e nos projetos terapêuticos ¿ são reconhecidas pelas instituições. No Hospital Especializado Lopes Rodrigues, que fica em Feira de Santana (BA) e hoje cuida de cerca de 300 pacientes, quase metade dos 30 enfermeiros está afastada por motivo de saúde. ¿Nossos quadros encontram-se envelhecidos e adoecidos¿, lamenta Rita Gomes, coordenadora de recursos humanos, há mais de 20 anos no hospital.

Medicamentos e terapia compõem o tratamento em quase todos os hospitais. Existem oficinas de trabalhos manuais, expressão corporal, teatro. Entretanto, quase sempre ficam em espaços improvisados, às vezes deteriorados. Outro local muito comum, na busca da ressocialização e do aumento da autoestima, é o ¿salão de beleza¿. Enquanto os homens se restringem a cortar o cabelo e fazer a barba, mulheres abusam dos esmaltes e até de tinturas para esconder os fios brancos. O público feminino também se envolve nas oficinas culinárias com certo interesse.

Nesse período, muitos pacientes estão preparando bandeiras e balões para as festas de são-joão. Graças à mobilização de funcionários, datas comemorativas não passam em branco nos hospitais. E até fora deles. Há mais de 10 anos, a micareta de Feira de Santana tem um bloco muito especial. O Loucos pela Vida sai sempre no primeiro dia da folia, composto por internos do Lopes Rodrigues e servidores. ¿É uma festa e uma forma de inseri-los, ainda que parcialmente, na realidade da cidade. Eles adoram¿, conta Rita.

CONDENAÇÃO INTERNACIONAL Em 2009, a morte de Damião Ximenes, assassinado dentro de uma clínica psiquiátrica na região de Sobral (CE), completa 10 anos. A violência contra o rapaz que tinha transtorno mental tornou-se emblemática porque foi o primeiro caso brasileiro a chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em outubro de 2004. Por unanimidade, os juízes condenaram o Brasil por violações de direitos humanos, obrigando-o a garantir celeridade e punição dos responsáveis pela tortura e morte de Damião. Até o momento, porém, os dois processos ¿ um na vara cível e outro na criminal ¿ permanecem sem sentença. ¿Se o caso de Damião, que teve uma condenação internacional, continua perdido no mar de processos da comarca de Sobral, imagine outras ocorrências¿, lamenta Renata Lira, advogada da ONG Justiça Global.

-------------------------------------------------------------------------------- Leia amanhã: a cruel realidade dos loucos que cometem crimes

-------------------------------------------------------------------------------- Deficiências

Pesquisa revela maiores problemas dos hospitais psquiátricos brasileiros:

Recursos humanos

67,5% dos hospitais têm menção de regular para baixo

38,5% estão com notas de ruim a péssimo

Projeto terapêutico/ Alta hospitalar

64% estão com menção de regular para baixo

32,4% foram avaliados entre ruim e péssimo

Alimentação dos pacientes

76% têm menções entre bom e o regular

Condições para atendimento de intercorrências clínicas

54% foram avaliados entre regular e ruim