Título: Geopolítica do clima
Autor: Leitão, Miriam
Fonte: O Globo, 12/12/2009, Economia, p. 26

A reunião mais esperada da semana começou de forma inesperada. Foi a Austrália e o Japão que bloquearam a negociação do primeiro documento proposto pela estrutura oficial da COP-15. Os dois países provam que insensatez não tem limites: o Japão é um arquipélago e a Austrália já está fazendo testes de evacuação da costa e teve quatro anos de seca

Foi mais uma surpresa numa semana de novidades nas negociações da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-15), em Copenhague.

Depois da guerra de papéis, ontem saiu a primeira versão de um documento que pode ser o oficial.

Redigida pela noite adentro da quinta para sextafeira, continuará em debate neste fim de semana.

Temia-se a reação dos Estados Unidos, mas quem reagiu mesmo foi o Japão, que fez algumas restrições ao texto. A pior reação veio da Austrália, um país que tem sofrido distúrbios ambientais fortes. Brasil e China disseram na reunião que gostaram do texto. A Europa disse que era uma boa base para se trabalhar. Os Estados Unidos disseram que aceitam trabalhar com o texto, mas que o tratamento dado às metas para países ricos não é base para negociação. Quem encrencou mesmo foi o Japão. Disse que o texto não dava nem para começo de conversa.

Esse relato me foi passado por duas fontes, uma delas estava dentro da reunião.

O texto que está em debate tem ousadias, mas é incompleto. É ambíguo, mas avança. Sugere metas mais pesadas para os países ricos do que tudo o que eles propuseram até agora.

Inclui os objetivos voluntários dos países em desenvolvimento como parte do texto, o que acabará levando a compromissos mais sólidos. Ricos têm que cortar emissões em relação a 1990, os em desenvolvimento vão cortar na tendência de aumento de emissões.

Aos ricos, a exigência é de que eles emagreçam; aos emergentes, que engordem menos.

O documento foi divulgado todo cheio de colchetes.

Nos colchetes, fica registrado o que não está decidido.

Num deles, há três opções para o nível de emissão de gases de efeito estufa que os ricos terão que ter em 2020.

A opção mais fraca é de corte de 25% a 30% em relação a 1990. Ou seja, propõe como o mínimo mais do que eles se comprometeram. A Europa até agora tem como meta 20%. Caminha para 30%. Os Estados Unidos, no entanto, não aceitam nem o ano de 1990 como base, mas sim o de 2005, e sua meta é 17%. O negociador americano, Todd Stern, disse que essa parte do texto é ¿desequilibrada¿.

Há outro trecho em que os colchetes dizem tudo do dilema aqui na COP. Trata de quem vai pôr dinheiro para o fundo de longo prazo que vai ser criado para combater as mudanças climáticas.

Primeiro colchete: só os países ricos contribuem; segundo colchete: todos os países menos os mais pobres terão que pôr dinheiro no fundo. Se ficar valendo a segunda opção, Brasil, China, Índia, África do Sul, países petrolíferos terão que contribuir com o fundo.

Mas, sinceramente, é possível imaginar que uma China possa escapar de ajudar a financiar os mais pobres? O Brasil não escapará de contribuir financeiramente para o combate às mudanças climáticas do mundo; cumprir metas internacionalmente fiscalizadas e mudar políticas internas. É só uma questão de tempo. Na primeira semana da COP15, caiu a ilusão de que tudo se resume a uma luta entre pobres e ricos. A geopolítica do clima é complexa e desafiadora.

É inaceitável que na mesma semana em que aqui, em Copenhague, o Brasil busca projeção e fala que tem metas ousadas de corte de emissões, o país anuncie financiamento do BNDES para termelétrica a carvão, anistia de multa aos desmatadores e mais prazo para os que desmataram ilegalmente respeitem a reserva legal. O governo brasileiro acha que tudo o que fala aqui fora é para inglês ver? Se a luta do comércio internacional permitiu a divisão do mundo entre desenvolvidos e grupo dos 77; a do clima tem mais subdivisões.

Os interesses se organizam de várias formas.

Numa entrevista ontem, o negociador-chefe da União Europeia, Arthur Runge-Metzger, deu uma estocada para cada lado. Respondendo a uma jornalista da China, que queria saber se era justo exigir que países em desenvolvimento contribuíssem financeiramente para fundos de combate à mudança climática, ele disse: ¿ Sim é justo. Nós na Europa temos países com níveis diferentes de desenvolvimento e vamos todos contribuir para o fundo de curto prazo.

Em seguida, perguntado sobre os Estados Unidos, o europeu disse: ¿ Nós contribuímos com 34% para os recursos de curto prazo de US$ 30 bilhões em três anos. Esperamos que os Estados Unidos, que têm uma renda per capita maior do que da Europa, dê pelo menos isso, ou mais.

Os ricos têm divisões; os em desenvolvimento e pobres não são um grupo. São vários. Os países que realmente precisam de socorro são os pobres, os muito pobres, os pequenos paísesilha devorados pela perspectiva de elevação do nível do mar.

O Brasil se orgulha de ser parte dos BRIC, deu dinheiro ao FMI, quer uma cadeira na ONU, e é um dos maiores emissores de gases de efeito estufa. Nada disso cabe na vestimenta de país pobre, sem responsabilidades no problema mais grave enfrentado pela humanidade.

A evolução desse debate levará os emergentes a terem mais compromissos. O Brasil pode se adiantar agora, ou ser obrigado a ceder mais tarde. Esse é o preço de ter crescido. Para exigir dos outros, terá que fazer sua parte. A maior tarefa será interna. O governo precisa buscar alguma coerência entre o que diz e o que faz.

oglobo.com.br/miriamleitao ¿ e-mail: miriamleitao@oglobo.com.br

COM ALVARO GRIBEL