Título: Cidadania e loucura : união contra o crack
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 31/05/2009, Brasil, p. 13

Montenegro, pequena cidade a 64 KM de Porto Alegre (RS), sofre com um número de usuários quase quatro vezes superior à média nacional. Comunidade se une para enfrentar o flagelo da droga

Dois objetos feitos de ferro e canos de PVC, cuidadosamente guardados na jaqueta, trazem a certeza do vício satisfeito. ¿Quem tem cachimbo e isqueiro não fica sem pedra¿, gaba-se Alan*. Num matagal onde os moradores do Bairro Nova Esperança, na periferia de Montenegro (RS), jogam futebol, o menino de 14 anos conta que, quando falta dinheiro para comprar crack, empresta o apetrecho utilizado para fumar a droga em troca de algumas tragadas. ¿Todo lugar tem gente usando, é fácil conseguir¿, diz.

A facilidade mencionada por Alan talvez venha da situação local. Ele mora numa cidade onde 2,9% da população são usuários da pedra, índice quase quatro vezes superior à média nacional ¿ de 0,8%, apontado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas como a proporção de brasileiros que já utilizaram o crack alguma vez na vida. O dado de Montenegro, município com cerca de 60 mil habitantes a 64km de Porto Alegre, é fruto de uma pesquisa feita pela Central Única de Favelas (Cufa), com a coordenação de uma assistente social, ouvindo 820 entrevistados de 17 bairros da cidade.

São estatísticas que só corroboraram o drama das mães de Montenegro que, antes mesmo desse levantamento, vendo seus filhos morrerem por causa do crack, se mobilizaram perante às autoridades em busca de soluções. Surgiu, então, uma articulação social denominada Montenegro contra o Crack, com participação ampla de segmentos como o empresariado da região, Ministério Público e Judiciário. Para os mais incrédulos em relação aos números da droga divulgados pela Cufa, as estatísticas do único Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade, que atende todos os tipos de transtornos mentais, chocam.

¿Dos 828 usuários cadastrados no serviço desde a sua criação, em 2007, 360 são dependentes de crack. Isso representa 44% do nosso atendimento¿, afirma Jaqueline Porto, psicóloga do Caps de Montenegro. Faltam, no centro, um terapeuta ocupacional, um auxiliar de administração, um de enfermagem, um profissional que dê oficinas e um acompanhante terapêutico. ¿Essa seria a equipe mínima exigida por lei. Ainda que tivéssemos esses profissionais, não daríamos conta da demanda¿, lamenta Jaqueline. Além dela, que é psicóloga, atendem no Caps de Montenegro um psiquiatra, um assistente social e um enfermeiro.

Com um quadro tão reduzido, a unidade funciona das 7h às 15h, durante a semana. Outras opções de atendimento que poderiam desafogar o Caps, de acordo com Jaqueline, também são problemáticas. ¿Temos a filosofia de trabalhar com a rede. Mas há apenas 11 leitos para dependência química a partir dos 16 anos em hospitais gerais aqui na cidade¿, diz. Além do número reduzido de vagas, o limite de idade imposta pelas instituições é outra barreira. ¿Cada vez mais crianças se envolvem com crack. Já atendemos um garoto de 7 anos¿, afirma a psicóloga. Segurança pública O engajamento das polícias, tanto civil quanto militar, no movimento Montenegro contra o Crack permitiu a identificação de aproximadamente 80 pontos de venda na cidade. ¿A Justiça compreendeu o problema e nos ajudou a combater, concedendo mandados de prisão com rapidez. Além disso, a comunidade passou a ter olhos vigilantes¿, explica o capitão Oscar Bessi, da PM de Montenegro. O índice de ocorrências criminais com envolvimento da droga, segundo ele, chegou a 75%. Alan, que não circula na cidade sem seus dois cachimbos, já foi flagrado com crack. ¿Pensei: `Agora, eu vou parar¿. No outro dia, o cara (traficante) mandou quatro petecas para eu fumar porque eu não tinha entregado ninguém¿, lembra o menino.

No outro extremo está Michel*. Ele mora no Bairro Germano Henke, um loteamento popular de Montenegro onde poucos imóveis têm registro e os serviços de saúde, lazer e cultura são escassos. Mesmo assim, o menino de 16 anos se agarrou ao movimento de rap e grafite que agita a comunidade e resolveu largar o crack. ¿Onde eu passava me chamavam de pedreiro. Tenho um monte de amigos internados em clínica. Conheço gente que morreu. Foi difícil, mas eu parei¿, diz. Por enquanto, Michel é uma exceção. No bairro do garoto, o índice de usuários encontrado pela pesquisa da Cufa é de estonteantes 5,22%.

Mães Protagonistas no movimento social que ganhou o respeito da sociedade de Montenegro, muitas mães da cidade choram a perda dos filhos. Joana*, 55 anos, vive à base de remédios. Para compensar a morte de um dos garotos, prefere falar do outro rebento, de 24, que também usou o crack, mas passou por uma fazenda terapêutica e hoje se recupera. ¿Ele mora com o pai agora. Já até arranjou trabalho¿, conta.

Dos dias de desespero com o outro filho drogado em casa, Joana lembra dos roubos constantes. ¿Ele levava tudo que eu tinha. Tive que passar um cadeado na porta do meu quarto¿, diz a mulher. A magreza do menino, mais intensa a cada dia e num ritmo inexplicável, deixava a mãe angustiada. O aspecto não poderia ser pior. ¿Meu filho ficou muito drogado, parecia um mendigo¿, recorda. A tristeza de ver o jovem de 20 anos se destruindo só não foi maior que a dor de perdê-lo, baleado, depois de uma briga por causa de droga.