Título: Os planos de saúde fazem o que querem
Autor: Bahia, Ligia
Fonte: O Globo, 10/01/2010, Economia, p. 25

Para especialista, mensalidades são baixas, mercado cresce artificialmente e ressarcimento ao sistema público e um "lixo"

Doutora em Saúde Pública, a médica Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da Saúde da UFRJ, afirma que o preço dos planos de saúde é muito baixo no Brasil. E que, para mantê-los assim, as empresas descontam do valor o atendimento prestado pelo serviço público a seus próprios clientes.

¿Senão o preço seria muito mais alto e não teríamos 25% da população atendida¿, diz, destacando que a expansão desse mercado se dá às custas do ¿livre trânsito entre o público e o privado¿. Para Ligia, o ressarcimento desses atendimentos ao SUS foi sendo limitado por medidas da Agência Nacional de Saúde e, hoje, pela lei, apenas internações eletivas têm de ser reembolsadas.

¿A regulamentação do ressarcimento é um lixo¿.

Cássia Almeida

O GLOBO: Como surgiu a ideia do ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS)? LIGIA BAHIA: O ressarcimento nasceu de uma ideia do Banco Mundial, de fazer um fundo para o atendimento de casos mais complexos. Por complexidade leia-se caro. O Jatene (Adib Jatene, ex-ministro da Saúde) transformou essa ideia em ressarcimento ao SUS, achando que seria um recurso adicional para o sistema.

Há uma justiça contábil evidente nisso. O problema é que nossa Constituição diz que a saúde é um direito de todos. Sistema universal atende rico. Então, a questão está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu qual a sua posição.

Enquanto isso, ninguém paga. As Unimeds vão entrando com ações nas instâncias inferiores.

Como funciona? LIGIA: Toda vez que um cliente é atendido pela rede do SUS, é expedida uma Autorização de Internação Hospitalar, com o nome da pessoa. Esses dados são cruzados com o cadastro de beneficiários de planos de saúde. A ideia do Jatene era de um ressarcimento mais amplo. O que está em vigência hoje é só o ressarcimento na internação eletiva, não na de emergência.

A lei determina isso? LIGIA: Isso foi por causa da regulamentação da lei 9.656, de 1998, que restringiu o ressarcimento às internações eletivas.

O caso do Fábio Barreto (cineasta que sofreu acidente e foi atendido no Hospital Miguel Couto, público) está fora. Atendimento ambulatorial, hemodiálise, medicamentos de uso excepcional para doenças raras, tudo isso está fora do ressarcimento.

Hoje, o SUS gasta R$ 2 bilhões por ano com medicamentos de uso excepcional. Com os da Aids gasta mais R$ 1 bilhão.

Está fora também o atendimento ambulatorial de câncer. Vários tratamentos como quimioterapia e radioterapia são ambulatoriais.

São procedimentos que as empresas empurram para o SUS.

O sistema de ressarcimento funciona? LIGIA: O sistema de informação está super falho. Ao longo do tempo, as medidas ¿ foram 43 ¿ retiraram o espírito da lei. Pelo lado das entidades médicas, científicas e dos consumidores, o objetivo era ampliar a cobertura.

Para as empresas, não era bem assim. As seguradoras, principalmente, queriam aprovar a entrada do capital estrangeiro e conseguiram. A lei não é uma coisa pura, que a sociedade exigiu.

Seria ingenuidade imaginar isso. Mesmo assim, ela saiu favorável do Congresso. Mas ficou pior administrativamente com as medidas da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar, criada para fiscalizar e regular os planos de saúde).

Essas medidas eram para regulamentar a lei? LIGIA: Isso. A do ressarcimento foi a pior de todas. Sinceramente, é um lixo. Restringiu o reembolso a internações eletivas, quando a gente sabe que o mais comum é o atendimento de emergência e os ambulatoriais.

Claro que há pressão das empresas contra o ressarcimento, principalmente das Unimeds.

Por quê? LIGIA: As Unimeds no interior usam muito o sistema público.

É muito comum. Elas alegam que têm cobertura e que são os clientes que fazem essa opção.

Há outras barreiras? LIGIA: O que também dificulta é que o preço do plano no Brasil é muito barato.

Muito barato? LIGIA: Compõe o preço o atendimento coberto pelo sistema público. Senão o valor do plano seria muito mais alto e, possivelmente, não teríamos 25% da população atendida. Temos o segundo maior mercado do mundo, que está crescendo.

O que está estimulando esse crescimento? LIGIA: Aumentou o emprego formal, um grande conjunto de empresas pequenininhas começaram a atuar no mercado, que vendem planos mais baratos.

A Sra. considera o valor baixo em que comparação? LIGIA: Dividindo o valor total das despesas administrativas e assistenciais dos planos de saúde pelo número de beneficiários, a mensalidade média é de R$ 117. A Petrobras gasta com seus funcionários R$ 1.383. A distância é enorme. Os planos que têm cobertura boa são muito mais caros do que esse valor médio. O tamanho do nosso mercado deveria ser muito menor. Ele é expandido artificialmente, por meio desse livre trânsito entre o público e o privado. O ressarcimento é uma ameaça a isso, a essa estrutura muito sólida.

E há ressarcimento? LIGIA: Há. Só que é ridículo. O valor dele é muito pequeno e dá um trabalho burocrático enorme.

Hoje, há mais de 200 pessoas trabalhando nesse tal de ressarcimento.

O número de internações em 2005 (último dado da ANS) foi de 173.332 . É muito pouco. Casos como o do Fábio Barreto foram só 60. Isso demonstra que só as eletivas foram identificadas.

Quais os principais problemas identificados? LIGIA: Gravidez, parto e problemas depois do parto, o que é uma coisa chocante. Você pensa que a cobertura pública é por acidente, câncer, cirurgia cardíaca, que são tratamentos caros.