Título: Um cemitério a céu aberto
Autor:
Fonte: O Globo, 15/01/2010, Mundo, p. 26

Com o governo em colapso após terremoto, e na ausência de esforços de resgate organizados, o Haiti já enterrou 7 mil de seus mortos em vala comum. Mas outros milhares jazem abandonados nas ruas

FUNCIONÁRIO DO principal necrotério de Porto Príncipe tenta arrumar alguns dos 1.500 corpos empilhados no local: faltam sacolas e espaço físico para acondicionar os mortos

A CAPITAL DO Haiti é vista completamente arruinada, de cima, numa imagem registrada pela ONU

Gilberto Scofield Jr.

Os tremores que destruíram boa parte de Porto Príncipe, somados à falta de coordenação das Forças de Paz da ONU na garantia da segurança e na orientação do trânsito na capital, fizeram a cidade mergulhar no caos. Os soldados da Força de Paz estão por ora preocupados em garantir a segurança das propriedades públicas, ajudar nos trabalhos de resgate (impedidos pela absoluta falta de guindastes e tratores no Haiti) e proteger os comboios que, por terra e por ar, chegam à capital com remédios, alimentos e combustíveis. Mas há falta de praticamente tudo, de água a medicamentos. Corpos se amontoam nas ruas do Centro - cerca de 1.500 jogados ao relento jaziam ontem em frente ao necrotério do maior hospital - e começam a cheirar mal, sendo motivo de preocupação pelo potencial transmissor de doenças. Sete mil já foram enterrados numa fossa coletiva, segundo o presidente do país, René Préval.

O êxodo de haitianos das áreas mais afetadas pelos tremores, no Centro e na Parte Baixa da capital - famílias inteiras com sacos gigantescos e malas com o que conseguiram resgatar dos destroços - deu um nó no trânsito já complicado de Porto Príncipe, uma cidade de ruas estreitas e entulhadas de camelôs e lixo. Outros desalojados acampam nas ruas, em barracas improvisadas, temerosos de novos desabamentos e de novos tremores. Há um intenso movimento de saída, bem como de remoção dos corpos já identificados por seus parentes - às vezes, até arrastados pelo chão, cobertos de pó. Esses cadáveres são transportados para fora da cidade em caçambas de caminhonetes comuns, diante dos olhares já amortecidos dos moradores da capital haitiana.

Numa situação descrita como "pesadelo logístico" pela porta-voz de ajuda da ONU, Elisabeth Byrs, o caos dificulta a contagem de número de mortos e feridos. O secretário-geral da organização, Ban Ki-moon, confirmou a morte de 36 funcionários das Nações Unidas e o desaparecimento de mais 150. A Cruz Vermelha - que estima três milhões de desabrigados - avalia que o número de vítimas passe dos 50 mil. E a imagem de corpos empilhados torna-se o símbolo máximo do colapso em que o Haiti se encontra desde terça-feira. Com o Estado literalmente arruinado - as sedes dos principais órgãos do governo local desabaram - e as autoridades despreparadas diante de uma calamidade dessa escala, o país não tem meios de comunicação ou energia, e mesmo o pequeno aeroporto, cuja pista voltou a operar, não dá conta da quantidade de tráfego aéreo ocasionada pela chegada de ajuda humanitária.

- Olhe para nós. Quem está nos ajudando? No momento, ninguém - indagou uma estudante de 19 anos, a única a sobreviver ao desabamento de seu edifício.

Falta de água e comida provoca saques

Apesar de o clima em geral ser menos de revolta que de espanto e dor, os moradores de Porto Príncipe estão aflitos com a falta de alimentos, água e combustíveis, o que causa pequenos episódios de saques, mesmo quando há presença da polícia. Um caminhão que tentava vender água nos subúrbios da capital foi atacado por moradores sedentos e o veículo teve que arrancar, quase atropelando as pessoas que fugiam do centro para viver com familiares no interior do país ou no próprio subúrbio da capital. Um comboio com mais de 15 caminhões carregados de alimentos vindos da República Dominicana foi escoltado durante toda a viagem, de mais de seis horas, por veículos blindados (incluindo um Urutu brasileiro), chefiados por soldados peruanos. Um posto de gasolina também foi saqueado.

Mas o ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, afirmou ao presidente haitiano, René Préval, que a ação do governo, neste momento, precisa ser acelerada para que este estado de choque não se transforme em raiva, o que só faria piorar um situação já dramática.

- Nossa prioridade é evitar que os mortos virem focos de doenças, que os ainda vivos possam ser resgatados e que a normalidade volte o mais rapidamente possível para o país - disse o ministro. - Só assim vamos evitar um cenário ainda pior.

A destruição dos três hospitais da capital transformou as ruas de Porto Príncipe e até a Base Militar brasileira General Bacellar - onde está concentrada a maior parte do efetivo de mais de mil soldados do Brasil no Haiti - numa UTI a céu aberto. Nem a garagem escapou de virar um imenso posto de saúde para cerca de 70 haitianos com fraturas e traumatismos variados. Uma enorme quantidade de moradores da capital se amontoa nos portões diariamente, desde terça-feira, implorando pelo atendimento médico que o governo haitiano não consegue dar. E o Exército brasileiro só será capaz de fornecê-lo em melhores condições a partir de hoje, quando será construído o Hospital de Campanha ao lado da base, com capacidade para até 400 atendimentos diários e 20 leitos para internações.

Os principais mercados e bancos da capital estão fechados, obrigando os haitianos a um escambo nas principais ruas de Porto Príncipe, onde itens do dia-a-dia, como sabonetes e chinelos, são trocados por água - considerada a principal "moeda" no país arruinado - ou comida. A falta de luz na cidade força os haitianos a obedecerem a uma espécie de toque de recolher informal. Ao escurecer, o patrulhamento da força de sete mil soldados da ONU em todo o país (comandados pelo general de brigada brasileiro Floriano Peixoto) é reforçado, especialmente na capital, para evitar episódios de violência que, até agora, ainda não contaminaram a população.

Na fronteira entre o Haiti e a República Dominicana, uma multidão de haitianos desesperados se esforçava para sair do país para tentar recomeçar a vida em um lugar com mais oportunidades e menos marcado pelas tragédias. Duas mil pessoas gravemente feridas cruzaram a fronteira até Jimaní, no país vizinho, para serem atendidas nos hospitais locais.

- Eu quero uma vida melhor para meu filho! - gritava uma haitiana que, do lado dominicano da fronteira, tentava convencer os guardas no imenso portão a liberar a entrada do marido.