Título: A inimiga nº 1 da educação
Autor: Araújo, Vera ; Berta, Ruben
Fonte: O Globo, 20/12/2009, Rio, p. 15

Violência impede crianças de irem à escola e provoca apatia ou agressividade

Era manhã do dia 9 de outubro quando os primeiros tiros começaram a ser ouvidos na Escola Municipal Afonso Várzea, às margens do Complexo do Alemão. Rapidamente, cerca de 500 estudantes saíram das salas de aula e se concentraram, sentados e em silêncio, no hall. À tarde, o colégio não abriu as portas. O caso ilustra como a violência tem interferido na educação: este ano, segundo a prefeitura, 100.267 alunos da rede municipal foram impedidos de frequentar a escola ou a creche por pelo menos um dia letivo por causa de tiroteios entre quadrilhas rivais ou envolvendo a polícia. O número corresponde a 13,6% do total de matriculados (735.996).

¿ A violência é um grande inimigo da educação. A política educacional não é única. É preciso também uma política de segurança. As crianças expostas à violência costumam desenvolver apatia ou ficar agressivas. Esperamos que o programa de pacificação das comunidades, implementada pelo governo estadual, possa ser ampliado para trazer bons reflexos como já ocorre em locais como a Cidade de Deus ¿ disse a secretária municipal de Educação, Cláudia Costin.

A violência afeta de forma ainda mais dura as creches: das 30.337 crianças de até 3 anos de idade matriculadas na rede municipal, 7.908 (26%) foram impedidas de frequentar esses espaços por pelo menos um dia por causa de confrontos.

Diretora da Afonso Várzea há mais de 20 anos, Eliane Saback admite que os tiroteios tornaram-se uma ¿triste rotina¿, fazendo com que os profissionais da escola elaborassem regras de conduta: ¿ Este ano, houve um tiroteio de manhã, que durou cerca de 40 minutos, num conjunto habitacional entre a escola e a comunidade da Nova Brasília.

As crianças são sempre levadas para o hall e a gente explica: ¿Vocês não são bobos e sabem o que está acontecendo. Vamos ficar bem quietos para que qualquer orientação que a gente dê seja bem ouvida. Isso vai ser bom para todo mundo.¿

Alunos são liberados aos poucos

Quando os pais começam a chegar, eles entram e saem aos poucos para evitar tumulto. A criança levanta a mão quando vê o seu responsável e é liberada. As que voltam sozinhas costumam ser liberadas só quando a situação fica mais tranquila: ¿ Os professores ficam muito apreensivos por que temos que passar uma tranquilidade que ninguém tem ¿ completa Eliane.

Apesar das dificuldades, a diretora ressalta que a comunidade tem muito respeito pela escola: não há pichações nem invasões. Este ano, a unidade foi contemplada com o projeto Escolas do Amanhã da prefeitura, voltada para 150 colégios em áreas de risco. Agora, no contraturno, as crianças participam de diversas oficinas, como a de jornal, em que elaboram o ¿Afonsinho¿.

A rotatividade de professores também diminuiu, segundo ela: ¿ Já perdemos muitos profissionais, que gostam do trabalho, mas não ficam depois que ouvem o primeiro tiro.

Houve melhora porque, de três anos para cá, temos sentido uma atenção maior para as áreas de risco: os primeiros colocados no concurso têm vindo para cá. Estamos numa área perigosa, de conflito, mas nós somos gente. Nossas crianças, são iguais a quaisquer outras da cidade, e merecem o compromisso da educação.

O início deste ano letivo precisou ser adiado em dez escolas de Senador Camará, na Zona Oeste, e no entorno devido a uma megaoperação da polícia no dia 4 de fevereiro. Além dos 6.354 alunos de colégios que ficaram sem aulas, quatro creches foram fechadas por causa dos tiroteios. No Ciep Olof Palme, em Senador Camará, o calendário escolar começou em 5 de fevereiro. Lá, onde estudam 511 crianças, foram elas que ensinaram aos professores a se proteger dos tiros.

¿ As crianças, infelizmente acostumadas à violência, acabaram nos mostrando como sair da linha de tiro.

Quando estamos na quadra ou no anexo ao Ciep, é mais complicado.

Temos que ir agachados até o prédio, onde ocupamos os corredores até o tiroteio acabar. É o local mais seguro ¿ conta a diretora-adjunta, Maria Silene.

A diretora-geral do Ciep, Ângela Ferreira, explica que o colégio fica numa área vulnerável, rodeada pelas favelas da Coreia, Nova Aliança, Minha Deusa e Mangueiral, onde foi encontrada, em 2005, uma réplica de uma espada medieval.

A região onde fica a escola tornouse mais conhecida em 2007, depois da divulgação, em telejornais de imagens da morte de dois traficantes por policiais civis num helicóptero. Ao ouvir o primeiro tiro, a direção do Ciep tranca os portões: ¿ As crianças ficam apavoradas e gritam muito. Os menores chegam a se agarrar nas pernas da gente. Quando há operação policial, elas ficam desesperadas.

Algumas crianças imaginam que o pai ou a mãe, pois alguns são filhos de pessoas envolvidas com o tráfico, possa ser morto.

Também na Zona Oeste, a Escola Municipal Haydéa Vianna Fiuza de Castro, na Favela do Aço, em Paciência, tem fama de nunca fechar as portas, apesar dos tiroteios quase diários.

Segundo a diretora-geral, Patrícia Gomes de Azevedo, o fato de a prefeitura ter inserido várias escolas localizadas em áreas de risco no programa Escolas do Amanhã vem amenizando a rotina de violência nessas áreas: ¿ As crianças e os pais se sentem seguros aqui. Por isso, ela nunca fecha.

O colégio oferece uma segurança que muitas casas não têm e agora, com as atividades por tempo integral do projeto, as crianças sentem mais prazer em assistir às aulas.

Mãe de Valdeir Brito, de 11 anos, que cursa o 5oano, Luciana Brito de Oliveira, que é voluntária na escola, conta que já chegou com o filho sob uma chuva de balas. Mas o perigo não está apenas durante os tiroteios entre traficantes da Favela do Aço e a polícia.

A escola fica no meio de um fogo cruzado: de um lado, fica uma favela dominada pela milícia, a Três Pontes; de outro, o conjunto Cesarão, dominado por uma facção rival. Quando os alunos da Haydéa Vianna Fiuza de Castro concluem o 5oano, não podem ir para outra escola próxima: ¿ Se uma criança daqui vai estudar em escolas da vizinhança, acaba sendo espancada. Quero muito que ele conclua os estudos e tenha profissão, mas é um risco ¿ lamenta Luciana.

A psicóloga Patrícia Alessandra, que dá assistência aos pais e alunos da Haydéa, diz que as crianças crescem achando que são rejeitadas: ¿ Eles têm histórico de muita violência, de sofrimento. Não podem circular em Santa Cruz porque podem ser reconhecidos como sendo de uma comunidade rival. O lazer deles passa ser a escola.

A diretora-adjunta, Eliane Lopes, lembra de dois meninos que foram presos por furto.

¿ Eram nossos alunos e percebemos que deveríamos dar carinho para resgatá-los. Hoje, um deles tem as melhores notas. O pai do outro foi morto e ele só tinha ódio no coração