Título: Zilda Arns, sem perder a esperança
Autor: Carvalho, Ana Paula de ; Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 14/01/2010, O Mundo, p. 29

ZILDA ARNS, SEM PERDER A ESPERANÇA INSPIRADA NO EVANGELHO DE SÃO JOÃO E INFATIGÁVEL, ELA AJUDOU 1,8 MILHÃO DE CRIANÇAS CHICO OTAVIO A PASTORAL DA CRIANÇA DAVA OS PRIMEIROS PASSOS, NOS ANOS 1980, QUANDO UMA VOLUNTÁRIA OUVIU DE ZILDA ARNS UM CONSELHO QUE JAMAIS ESQUECERIA: — DEPOIS DO ALMOÇO, DESCANSE 15 MINUTOS. SENÃO, UM BOM VINHO PODE SE TRANSFORMAR EM AMARGO VINAGRE. PARA QUEM ACREDITAVA QUE CAUSAS URGENTES, COMO O COMBATE À MORTALIDADE INFANTIL, EXIGIAM PRESSA, AS PALAVRAS DA "DOUTORA ZILDA" SURPREENDIAM. NO ENTANTO, A ENFERMEIRA SERGIPANA ANA RUTH GOIS NÃO SÓ GUARDOU O CONSELHO DADO EM 1985, COMO O REPETE ATÉ HOJE, NA CONDIÇÃO DE DIRIGENTE NACIONAL DA PASTORAL, ÀS NOVAS GERAÇÕES DE VOLUNTÁRIOS. — A PRESSA É IMPORTANTE, MAS ELA TAMBÉM NOS ENSINOU QUE A PAUSA É NECESSÁRIA PARA JAMAIS PERDERMOS A FORÇA DO AMOR MISSIONÁRIO. DESDE CEDO, A VOCAÇÃO PARA SOCORRER OS POBRES ZILDA ARNS, QUE MORREU ANTEONTEM NO TERREMOTO DO HAITI, SÓ PRECISOU DE 15 MINUTOS DE DESCANSO DIÁRIO PARA CONSTRUIR UMA DAS MAIS IMPORTANTES AÇÕES DE SOLIDARIEDADE DO PLANETA. VINTE E SEIS ANOS DEPOIS DE FUNDADA NA PEQUENA FLORESTÓPOLIS, NORTE DO PARANÁ, A PASTORAL DA CRIANÇA MOBILIZA 260 MIL VOLUNTÁRIOS NO BRASIL, ACOMPANHANDO O DESENVOLVIMENTO DE 1,8 MILHÃO DE CRIANÇAS DE ZERO A SEIS ANOS. INSPIRADO NO MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES E DOS PEIXES, CONTADO NO EVANGELHO DE SÃO JOÃO, O PROJETO ESTÁ ESPALHADO EM 4.066 MUNICÍPIOS BRASILEIROS (NÚMERO FORNECIDO PELA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL) ORIENTANDO GESTANTES E TIRANDO AS CRIANÇAS DA DESNUTRIÇÃO, DAS PNEUMONIA E DA DIARREIA. A TRAGÉDIA OCORREU QUANDO ZILDA ARNS CUMPRIA, NO HAITI, MAIS UMA MISSÃO JUNTO AOS QUE SOFRIAM. ESTA CARACTERÍSTICA ATRAVESSOU PRATICAMENTE TODOS OS 75 ANOS DE VIDA DESTA CATARINENSE, MÉDICA E SANITARISTA. DESDE CEDO, CONTAVA ELA, ERA HÁBITO FICAR OLHANDO A MÃE, LÍDER COMUNITÁRIA DE SUA CIDADE, FICAR FAZENDO CURATIVOS EM PESSOAS POBRES. — ÀS VEZES, ELA PEDIA QUE EU AJUDASSE. ENTÃO, JÁ TINHA ESSE PRAZER — LEMBRAVA. NASCIDA EM FORQUILHINHA, ZILDA ERA FILHA DE UM CASAL ENVOLVIDO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE SUA CIDADE. SUA MÃE ERA UMA ESPÉCIE DE AGENTE DE SAÚDE, ENQUANTO SEU PAI ERA CONVOCADO PARA RESOLVER PEQUENOS CONFLITOS ENTRE VIZINHOS. DE SEUS 13 IRMÃOS, CINCO SEGUIRAM A VOCAÇÃO RELIGIOSA, SENDO UM DELES DOM PAULO EVARISTO ARNS, ARCEBISPO EMÉRITO DE SÃO PAULO. CARREIRA COMEÇOU EM POSTO DA PERIFERIA DE CURITIBA ALÉM DOS PAIS, SEU IRMÃO MAIS VELHO, FREI JOÃO CRISOSTOMO, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, TEVE MUITA INFLUÊNCIA EM SUA VIDA. ZILDA COMEÇOU SUA CARREIRA PROFISSIONAL EM POSTOS DE SAÚDE NA PERIFERIA DE CURITIBA. SUA CRENÇA DE QUE O MELHOR CAMINHO É A DESCENTRALIZAÇÃO AJUDOU-A NA MONTAGEM DE UMA REDE DE ASSISTÊNCIA À MATERNIDADE INFANTIL. NA MESMA ÉPOCA, JÁ COM CINCO FILHOS, ZILDA PERDEU O MARIDO EM UM ACIDENTE. PARA SUPERAR O TRAUMA, ELA ENCONTRARIA FORÇAS NUM CHAMADO DA SECRETARIA DE SAÚDE DO ENTÃO GOVERNADOR NEY BRAGA PARA COORDENAR O COMBATE A UMA EPIDEMIA DE POLIOMIELITE EM UNIÃO DA VITÓRIA, NO PARANÁ. — MONTEI UM PLANO QUE JUNTOU ESCOLAS, A IGREJA, A SAÚDE PÚBLICA, AS PREFEITURAS E A EMATER. ATUAMOS DE UM MODO ARTICULADO. FOI UM DOS MAIS BELOS TRABALHOS DA MINHA VIDA — RECORDAVA-SE. A VOCAÇÃO PARA O CONVÍVIO COM AS CRIANÇAS NÃO MAIS A ABANDONARIA. EM SEGUIDA, VIRIA O CONVITE DE SEU IRMÃO, DOM PAULO, A LIDERAR UM PROJETO DA IGREJA DE ENFRENTAR AS ALTAS TAXAS DE MORTALIDADE INFANTIL. — NO INÍCIO, HOUVE RESISTÊNCIA ATÉ DENTRO DA PRÓPRIA IGREJA. NUMA ÉPOCA DE GRANDE INFLUÊNCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, ALGUNS RELIGIOSOS ACHAVAM QUE ERA UM PAPEL DO ESTADO. OUTROS, QUE ERA ASSISTENCIALISMO — DISSE O PADRE E TEÓLOGO LUIZ ANTÔNIO LOPES RICCI, AUTOR EM 2007 DE UMA TESE DE DOUTORADO SOBRE A PASTORAL DA CRIANÇA. AOS POUCOS, CONTA O TEÓLOGO, ZILDA ARNS FOI VENCENDO AS RESISTÊNCIAS INTERNAS. PESARAM PARA ISSO, SEGUNDO ELE, A CONVICÇÃO DE QUE A PASTORAL DA CRIANÇA NÃO ERA ASSISTENCIALISMO, MAS DISSEMINAÇÃO DO CONHECIMENTO. SUA FUNDADORA SEMPRE REPELIU COM VEEMÊNCIA QUALQUER TIPO DE AÇÃO QUE IMPLICASSE A DISTRIBUIÇÃO SISTEMÁTICA DE BENESSES: — DEUS ME LIVRE DE QUERER CESTAS BÁSICAS. DEPOIS, ELES NÃO QUEREM MAIS EDUCAÇÃO. SÓ QUEREM PESAR AS CRIANÇAS PARA RECEBER AS CESTAS. A ESTRATÉGIA DO PROGRAMA, DESDE O INÍCIO, FOI CONSCIENTIZAR AS MÃES DE SEU PAPEL CENTRAL DA SAÚDE DAS CRIANÇAS. — A CULTURA DA PAZ COMEÇA NA BARRIGA DA MÃE E PROSSEGUE COM O ALEITAMENTO MATERNO, QUE É A ESCOLA DO AMOR, DO DIÁLOGO — DIZIA ELA. OPÇÃO POR VALORIZAR A CAPACITAÇÃO DOS VOLUNTÁRIOS PARA CHEGAR À ATUAL COBERTURA, A ESTRATÉGIA DO PROGRAMA FOI INVESTIR POUCO EM ADMINISTRAÇÃO E MAIS EM CAPACITAÇÃO DE LÍDERES, EM VISITA A FAMÍLIAS, NA RECUPERAÇÃO DE DESNUTRIDOS E NO TRANSPORTE DE VOLUNTÁRIOS — A MAIORIA DELES ENTRE 19 E 39 ANOS E APROXIMADAMENTE 90 MIL POSSUINDO O PRIMEIRO GRAU INCOMPLETO. PARA ZILDA ARNS, TRÊS CUIDADOS ERAM FUNDAMENTAIS PARA ANIMAR O VOLUNTARIADO: VALORIZAR OS MILITANTES, FAZÊ-LOS SE SENTIREM PARTE DA FAMÍLIA E ACREDITAREM EM DEUS COMO UMA REFERÊNCIA DE PAZ, IGUALDADE E JUSTIÇA. — ELES NÃO CONTRIBUEM COM DINHEIRO, MAS SE FOSSEMOS CONTABILIZAR O SEU TRABALHO COM BASE NO SALÁRIO MÍNIMO, O VALOR SERIA DE R$78 MILHÕES — COSTUMAVA DIZER. INTEGRANTE DO CONSELHO DIRETOR DA PASTORAL, ANA RUTH GOES DISSE QUE, MESMO APÓS A SAÍDA DE ZILDA DO COMANDO DA ENTIDADE, EM 2008, OS VOLUNTÁRIOS FAZIAM QUESTÃO DE ENCONTRÁ-LA, ESTAR JUNTO COM ELA. — ERA ENGRAÇADO PORQUE NINGUÉM QUERIA TIRAR FOTOS COLETIVAS. SÓ SERVIA SE FOSSE COM A DOUTORA ZILDA SOZINHA. SEMPRE COMEDIDA AO ANALISAR O SEU PAPEL, A PRÓPRIA FUNDADORA DO PROJETO ACHAVA GRAÇA QUANDO SE REFERIA AO SEU CARISMA: — OUTRO DIA, UMA LÍDER DE RONDÔNIA ABRAÇOU, CHORANDO, DIZENDO QUE O MAIOR SONHO DELA ERA ME CONHECER. ZILDA DIZIA QUE, PARA SALVAR VIDAS NÃO MEDIA ESFORÇOS E NEM SELECIONAVA O SEU VOLUNTARIADO: — EM ÁREA DE PROSTITUIÇÃO, SÃO AS PROSTITUTAS QUE ESTÃO MAIS PRÓXIMAS DA CRIANÇA. EM ÁREA DOMINADA PELO TRÁFICO DE DROGAS, ÀS VEZES EU ME ENCONTRO COM LÍDERES QUE NÃO SÃO DO TRÁFICO. ÀS VEZES, NÃO. ELA EXPLICAVA QUE A PASTORAL DA CRIANÇA TEM UMA MÍSTICA E UMA ORGANIZAÇÃO BASEADAS NO EVANGELHO DE SÃO JOÃO, QUE EXPLICA COMO OCORREU O MILAGRE OPERADO POR JESUS NA MULTIPLICAÇÃO DOS PEIXES. — OS DISCÍPULOS ACONSELHARAM A MANDAR AS PESSOAS EMBORA PORQUE NÃO TINHAM COMIDA PARA TODOS. COMO QUEM DIZ QUE ISSO NÃO É PROBLEMA DO GOVERNO. ENTÃO, JESUS MANDOU OS DISCÍPULOS DAREM COMIDA PARA O POVO. A COMIDA DEU E SOBROU. PARA O PADRE LUIZ ANTÔNIO RICCI, A MORTE DE ZILDA TEM "UM CONTEÚDO TEOLÓGICO FORTE" PORQUE A FUNDADORA DA PASTORAL DA CRIANÇA ESTAVA NO HAITI COMO UMA MISSIONÁRIA, ENTRE OS POBRES, NO PAÍS MAIS POBRE DAS AMÉRICAS. POR ESSE MOTIVO, O PADRE E TEÓLOGO NÃO DESCARTA A POSSIBILIDADE DE UM FUTURO PROCESSO DE BEATIFICAÇÃO. — OS CAMINHOS DA FÉ NOS PERMITEM VER UM SENTIDO MAIOR NESTA MORTE. ELA DESAPARECE COMO UMA PROFETIZA. AINDA É PREMATURO FALAR EM CANONIZAÇÃO PORQUE A IGREJA É MUITO PRUDENTE NESTA QUESTÃO, MAS ELA TEM TODAS AS VIRTUDES PARA ISSO. "A PASTORAL DA CRIANÇA TEM UMA MÍSTICA E UMA ORGANIZAÇÃO BASEADAS NO EVANGELHO DE SÃO JOÃO. ELE EXPLICA COMO OCORREU O MILAGRE NA MULTIPLICAÇÃO DOS PEIXES." ZILDA ARNS "TRANSMITO MEU PESAR E MINHA TOTAL SOLIDARIEDADE AO POVO HAITIANO E À FAMÍLIA DAS VÍTIMAS BRASILEIRAS, EM ESPECIAL À DE ZILDA ARNS" PRESIDENTE LULA "NINGUÉM FEZ TANTO EM NOSSO PAÍS PELA VIDA DAS CRIANÇAS QUANTO ZILDA ARNS.. SUA PERDA É DOLOROSA PARA TODOS NÓS" JOSÉ SERRA, GOVERNADOR DE SÃO PAULO "O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL MANIFESTA PROFUNDA CONSTERNAÇÃO ANTE A DOLOROSA PERDA DA DOUTORA ZILDA ARNS GILMAR MENDES, PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL "FOI ELA QUE MOSTROU COMO É POSSÍVEL, COM A AJUDA DO TRABALHO VOLUNTÁRIO, ENFRENTAR OS PROBLEMAS SOCIAIS E REDUZIR O SOFRIMENTO DOS MAIS POBRES" FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA "DOUTORA ZILDA NUNCA GOSTOU DE DISTRIBUIR NADA PELA PASTORAL. NÃO QUERIA CRIAR UMA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA. O OBJETIVO É ABRIR CAMINHOS, ENSINAR A MÃE A CUIDAR DE SEUS FILHOS. A PRIMEIRA PEDIATRA DE UMA CRIANÇA É A MÃE" ANA RUTH GÓES, ENFERMEIRA E DIRIGENTE NACIONAL DA PASTORAL DA CRIANÇA "UMA FRASE ATRIBUÍDA Á MADRE TERESA DE CALCUTÁ DIZ QUE NÃO PODEMOS PERMITIR QUE UMA PESSOA DEIXE A NOSSA PRESENÇA SEM SE SENTIR MELHOR E MAIS FELIZ. COM ZILDA ARNS, ERA ASSIM" LUIZ ANTONIO RICCI, PADRE E TEÓLOGO, AUTOR DE UMA TESE DE DOUTORADO SOBRE A PASTORAL DA CRIANÇA ZILDA ARNS PESA UMA CRIANÇA ATENDIDA PELO SERVIÇO QUE ELA CRIOU: DEDICAÇÃO À PASTORAL E AOS SEUS MAIS DE 260 MIL VOLUNTÁRIOS NO PAÍS UM ENCONTRO COM O PAPA JOÃO PAULO II, NO VATICANO, EM 1995. ACIMA, O CARINHO COM O CARDEAL DOM EUGÊNIO SALES ZILDA ARNS NUMA CERIMÔNIA EM BRASÍLIA COM O ENTÃO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, O SENADOR RAMEZ TEBET, O IRMÃO DOM PAULO EVARISTO ARNS, AÉCIO NEVES E A ATRIZ FERNANDA MONTENEGRO 14/01/2010 Zilda Arns, sem perder a esperança Inspirada no Evangelho de São João e infatigável, ela ajudou 1,8 milhão de crianças Chico Otavio A Pastoral da Criança dava os primeiros passos, nos anos 1980, quando uma voluntária ouviu de Zilda Arns um conselho que jamais esqueceria: ¿ Depois do almoço, descanse 15 minutos. Senão, um bom vinho pode se transformar em amargo vinagre. Para quem acreditava que causas urgentes, como o combate à mortalidade infantil, exigiam pressa, as palavras da "doutora Zilda" surpreendiam. No entanto, a enfermeira sergipana Ana Ruth Gois não só guardou o conselho dado em 1985, como o repete até hoje, na condição de dirigente nacional da Pastoral, às novas gerações de voluntários. ¿ A pressa é importante, mas ela também nos ensinou que a pausa é necessária para jamais perdermos a força do amor missionário. Desde cedo, a vocação para socorrer os pobres Zilda Arns, que morreu anteontem no terremoto do Haiti, só precisou de 15 minutos de descanso diário para construir uma das mais importantes ações de solidariedade do planeta. Vinte e seis anos depois de fundada na pequena Florestópolis, norte do Paraná, a Pastoral da Criança mobiliza 260 mil voluntários no Brasil, acompanhando o desenvolvimento de 1,8 milhão de crianças de zero a seis anos. Inspirado no milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, contado no Evangelho de São João, o projeto está espalhado em 4.066 municípios brasileiros (número fornecido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) orientando gestantes e tirando as crianças da desnutrição, das pneumonia e da diarreia. A tragédia ocorreu quando Zilda Arns cumpria, no Haiti, mais uma missão junto aos que sofriam. Esta característica atravessou praticamente todos os 75 anos de vida desta catarinense, médica e sanitarista. Desde cedo, contava ela, era hábito ficar olhando a mãe, líder comunitária de sua cidade, ficar fazendo curativos em pessoas pobres. ¿ Às vezes, ela pedia que eu ajudasse. Então, já tinha esse prazer ¿ lembrava. Nascida em Forquilhinha, Zilda era filha de um casal envolvido com os movimentos sociais de sua cidade. Sua mãe era uma espécie de agente de saúde, enquanto seu pai era convocado para resolver pequenos conflitos entre vizinhos. De seus 13 irmãos, cinco seguiram a vocação religiosa, sendo um deles Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Carreira começou em posto da periferia de Curitiba Além dos pais, seu irmão mais velho, frei João Crisostomo, professor universitário, teve muita influência em sua vida. Zilda começou sua carreira profissional em postos de saúde na periferia de Curitiba. Sua crença de que o melhor caminho é a descentralização ajudou-a na montagem de uma rede de assistência à maternidade infantil. Na mesma época, já com cinco filhos, Zilda perdeu o marido em um acidente. Para superar o trauma, ela encontraria forças num chamado da Secretaria de Saúde do então governador Ney Braga para coordenar o combate a uma epidemia de poliomielite em União da Vitória, no Paraná. ¿ Montei um plano que juntou escolas, a Igreja, a saúde pública, as prefeituras e a Emater. Atuamos de um modo articulado. Foi um dos mais belos trabalhos da minha vida ¿ recordava-se. A vocação para o convívio com as crianças não mais a abandonaria. Em seguida, viria o convite de seu irmão, Dom Paulo, a liderar um projeto da Igreja de enfrentar as altas taxas de mortalidade infantil. ¿ No início, houve resistência até dentro da própria igreja. Numa época de grande influência da Teologia da Libertação, alguns religiosos achavam que era um papel do Estado. Outros, que era assistencialismo ¿ disse o padre e teólogo Luiz Antônio Lopes Ricci, autor em 2007 de uma tese de doutorado sobre a Pastoral da Criança. Aos poucos, conta o teólogo, Zilda Arns foi vencendo as resistências internas. Pesaram para isso, segundo ele, a convicção de que a Pastoral da Criança não era assistencialismo, mas disseminação do conhecimento. Sua fundadora sempre repeliu com veemência qualquer tipo de ação que implicasse a distribuição sistemática de benesses: ¿ Deus me livre de querer cestas básicas. Depois, eles não querem mais educação. Só querem pesar as crianças para receber as cestas. A estratégia do programa, desde o início, foi conscientizar as mães de seu papel central da saúde das crianças. ¿ A cultura da paz começa na barriga da mãe e prossegue com o aleitamento materno, que é a escola do amor, do diálogo ¿ dizia ela. Opção por valorizar a capacitação dos voluntários Para chegar à atual cobertura, a estratégia do programa foi investir pouco em administração e mais em capacitação de líderes, em visita a famílias, na recuperação de desnutridos e no transporte de voluntários ¿ a maioria deles entre 19 e 39 anos e aproximadamente 90 mil possuindo o primeiro grau incompleto. Para Zilda Arns, três cuidados eram fundamentais para animar o voluntariado: valorizar os militantes, fazê-los se sentirem parte da família e acreditarem em Deus como uma referência de paz, igualdade e justiça. ¿ Eles não contribuem com dinheiro, mas se fossemos contabilizar o seu trabalho com base no salário mínimo, o valor seria de R$78 milhões ¿ costumava dizer. Integrante do Conselho Diretor da Pastoral, Ana Ruth Goes disse que, mesmo após a saída de Zilda do comando da entidade, em 2008, os voluntários faziam questão de encontrá-la, estar junto com ela. ¿ Era engraçado porque ninguém queria tirar fotos coletivas. Só servia se fosse com a doutora Zilda sozinha. Sempre comedida ao analisar o seu papel, a própria fundadora do projeto achava graça quando se referia ao seu carisma: ¿ Outro dia, uma líder de Rondônia abraçou, chorando, dizendo que o maior sonho dela era me conhecer. Zilda dizia que, para salvar vidas não media esforços e nem selecionava o seu voluntariado: ¿ Em área de prostituição, são as prostitutas que estão mais próximas da criança. Em área dominada pelo tráfico de drogas, às vezes eu me encontro com líderes que não são do tráfico. Às vezes, não. Ela explicava que a Pastoral da Criança tem uma mística e uma organização baseadas no Evangelho de São João, que explica como ocorreu o milagre operado por Jesus na multiplicação dos peixes. ¿ Os discípulos aconselharam a mandar as pessoas embora porque não tinham comida para todos. Como quem diz que isso não é problema do governo. Então, Jesus mandou os discípulos darem comida para o povo. A comida deu e sobrou. Para o padre Luiz Antônio Ricci, a morte de Zilda tem "um conteúdo teológico forte" porque a fundadora da Pastoral da Criança estava no Haiti como uma missionária, entre os pobres, no país mais pobre das Américas. Por esse motivo, o padre e teólogo não descarta a possibilidade de um futuro processo de beatificação. ¿ Os caminhos da fé nos permitem ver um sentido maior nesta morte. Ela desaparece como uma profetiza. Ainda é prematuro falar em canonização porque a igreja é muito prudente nesta questão, mas ela tem todas as virtudes para isso. "A Pastoral da Criança tem uma mística e uma organização baseadas no Evangelho de São João. Ele explica como ocorreu o milagre na multiplicação dos peixes." Zilda Arns "Transmito meu pesar e minha total solidariedade ao povo haitiano e à família das vítimas brasileiras, em especial à de Zilda Arns" Presidente Lula "Ninguém fez tanto em nosso país pela vida das crianças quanto Zilda Arns.. Sua perda é dolorosa para todos nós" José Serra, governador de São Paulo "O Supremo Tribunal Federal manifesta profunda consternação ante a dolorosa perda da doutora Zilda Arns Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal "Foi ela que mostrou como é possível, com a ajuda do trabalho voluntário, enfrentar os problemas sociais e reduzir o sofrimento dos mais pobres" Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República "Doutora Zilda nunca gostou de distribuir nada pela Pastoral. Não queria criar uma relação de dependência. O objetivo é abrir caminhos, ensinar a mãe a cuidar de seus filhos. A primeira pediatra de uma criança é a mãe" Ana Ruth Góes, enfermeira e dirigente nacional da Pastoral da Criança "Uma frase atribuída á Madre Teresa de Calcutá diz que não podemos permitir que uma pessoa deixe a nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz. Com Zilda Arns, era assim" Luiz Antonio Ricci, padre e teólogo, autor de uma tese de doutorado sobre a Pastoral da Criança ZILDA ARNS pesa uma criança atendida pelo serviço que ela criou: dedicação à Pastoral e aos seus mais de 260 mil voluntários no país UM ENCONTRO COM o Papa João Paulo II, no Vaticano, em 1995. Acima, o carinho com o cardeal Dom Eugênio Sales ZILDA ARNS numa cerimônia em Brasília com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, o senador Ramez Tebet, o irmão Dom Paulo Evaristo Arns, Aécio Neves e a atriz Fernanda Montenegro