Título: O Brasil perde a sua maior missionária
Autor: Carvalho, Ana Paula de ; Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 14/01/2010, O Mundo, p. 29

Encontrada nos escombros no Haiti, Zilda Arns falava numa igreja para voluntários que trabalham com crianças

RIO E CURITIBA. A catástrofe no Haiti matou uma brasileira reconhecida internacionalmente por sua ação no campo social. Aos 75 anos, a pediatra e sanitarista Zilda Arns Neumann ¿ irmã de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo emérito de São Paulo ¿ estava em Porto Príncipe, numa palestra dentro de uma igreja, onde 150 pessoas ouviam suas palavras no momento do terremoto; seu corpo foi encontrado nos escombros do templo. Ela adiara a viagem ao Haiti por quatro vezes.

Nascida em Santa Catarina, ela fundou e passou a coordenar a Pastoral da Criança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1983. Em 2008, deixou a coordenação da Pastoral da Criança no Brasil para assumir a direção da Pastoral Internacional da Criança. Ficou também à frente da Pastoral da Pessoa Idosa.

Reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Pastoral da Criança tem 260 mil voluntários em todo o mundo, espalhados em 20 países. No Brasil, esses voluntários acompanham o desenvolvimento de 1,8 milhão de crianças até seis anos. São atendidas ainda 94 mil gestantes em 4.066 municípios em todos os estados. Enquanto a média nacional de mortes de menores de 1 ano é de 22 por mil nascidos vivos; nos locais beneficiados pelo trabalho da Pastoral da Criança, esse índice cai para 12,4 por mil nascidos vivos, a metade do índice nacional

Indicada para o Nobel da Paz

A palestra Zilda no Haiti visava ¿a motivar os líderes e voluntários da Pastoral da Criança no Haiti¿, informou ontem a Pastoral, em nota.

Muito abalado com a morte da irmã, Dom Paulo divulgou nota em que diz que ¿Zilda morreu de uma maneira muito bonita, por defender uma causa em que sempre acreditou. Que nosso Deus, em sua misericórdia, acolha no céu aqueles que na terra lutaram pelas crianças e os desamparados¿, escreveu Dom Paulo, que encerrou a nota dizendo: ¿Não é hora de perder a esperança¿.

Viúva, mãe de quatro filhos ¿ a quinta filha morreu num acidente de carro ¿ a médica conquistou prêmios nacionais e internacionais por seu trabalho humanitário. Em 2001, 2002 e 2003, foi indicada pelo governo de São Paulo para o Prêmio Nobel da Paz. Em 2003, como ¿Personalidade do ano¿, recebeu o prêmio ¿Faz Diferença¿¿, do GLOBO, pelos resultados conquistados pela Pastoral da Criança.

No Haiti e em outros países, Zilda pretendia ajudar a população com a receita simples mas eficiente do soro caseiro e do controle da pesagem. Este ano, ela iria também a Argentina, Colômbia, Uruguai, México, República Dominicana, Angola e GuinéBissau, segundo a Pastoral.

O corpo da médica, sob os cuidados do Exército brasileiro no Haiti, deve chegar no fim desta semana ao Brasil, segundo Nelson Arns Neumann, um de seus filhos e coordenador-adjunto da Pastoral da Criança.

¿ O Ministério das Relações Exteriores cedeu um avião para trazer o corpo ao

Brasil, e a previsão é que chegue nas próximas 24 horas ¿ afirmou ele, em entrevista coletiva na sede da entidade, em Curitiba, com voluntários e funcionários emocionados.

O velório será na sede da Pastoral e o enterro, no Cemitério Água Verde, na região central de Curitiba.

¿Ela estava fazendo um discurso em uma igreja para cerca de 150 pessoas, quando ocorreu o terremoto. Os escombros caíram sobre ela. Segundo as pessoas que estavam no local, ela faleceu na hora ¿ afirmou o filho.

O capitão do exército José Roberto Pinho de Andrade Lima, de 39 anos, baiano, natural da cidade de Senhor do Bonfim, que serviria de intérprete da fundadora da Pastoral da Criança, salvouse do desastre porque, cansado de uma ação na noite anterior, designou o tenente Bruno Ribeiro Mário para cumprir a tarefa.

O Centro de Informações do Exército ainda não confirmou se era realmente o tenente que acompanhava a médica.

Ontem, Nelson descreveu algumas características da mãe.

Nada, enfatizou ele, abalava sua coragem da missionária: ¿ Se fôssemos definir Zilda Arns com uma palavra, esta seria persistência. Quando minha mãe estabelecia uma meta, ia até o fim. Nada tirava sua firmeza ou a impedia de concretizar um projeto. A verdadeira homenagem que podemos prestar a ela é garantir a vida às nossas crianças.

A seu lado, a irmã Heloísa, com a voz embargada, lembrouse da última conversa: ¿ A gente se falou domingo, e ela estava bem animada. Está difícil. Ela sempre reunia a família. Fez isso 12 de dezembro com a família Arns e no dia 25, reunindo filhos e netos.

A voluntária Maria Ceiça expôs, em seguida, uma das lições deixada pela líder da Pastoral da Criança.

¿Temos que continuar.

Mulheres como a gente morrem rápido e fermentam rápido.

Eu preciso desse fermento em Timor Leste e outros locais do mundo onde estamos.

Amar é fazer o outro crescer.

Quem ama faz isso, e a doutora Zilda me ensinou isso.

Os exemplos de dona Zilda se multiplicavam no seu dia a dia.

Ela, por exemplo, interrompeu suas férias para ir ao Haiti, viagem que fora adiada quatro vezes.

Em meio a dificuldades com emissão de passagem e do passaporte, ela conseguiu embarcar no país mais pobre das Américas.

O sobrinho Sérgio Arns se impressionava com seu dinamismo e perseverança: ¿ Minha tia sempre prometia, nas festas de fim de ano, diminuir o ritmo de trabalho no ano seguinte e nunca cumpria.

Dizia que a Pastoral era a cachacinha dela.

¿Ela ainda tinha muitos planos¿

Além dos quatro filhos e de dez netos, Zilda deixa milhares de voluntários órfãos. Uma delas, Amélia Cabral Alessi, na Pastoral há 14 anos, assegurou que todos vão seguir seus passos.

¿ Era uma mãe bondosa, que ensinava a praticar caridade, a dar valor a uma grande amizade e a ganhar confiança das pessoas mais humildes. Vamos continuar o trabalho. Dona Zilda não iria querer que a gente abandonasse ¿ disse, aos prantos.

Outra voluntária, Gildete Alves Fonseca de Oliveira estava inconformada.

¿Ouvi a notícia e ainda não acredito. Depois da minha mãe, é a pessoa que mais amo ¿ disse ela, que, embora creia na continuidade do trabalho da Pastoral, considera insubstituível a capacidade de dona Zilda contagiar a todos. ¿ Nos encontros, ela contagiava com sua alegria.

Guardo no meu coração essa insistência em transformar.

Nelson Arns confirmou a continuidade do trabalho: ¿ Sabemos que Zilda não pretendia parar seu trabalho agora. Ela ainda tinha muitos planos, muitos sonhos