Título: Todo o poder aos haitianos
Autor: Scofield Jr, Gilberto
Fonte: O Globo, 24/01/2010, O Mundo, p. 32
Para especialistas, projeto de reconstrução do país deve envolver o governo local e a população
. Na tarde da sextafeira passada, enquanto o presidente do Haiti, René Préval, dava uma coletiva de imprensa para anunciar, ao lado do chanceler da República Dominicana, Carlos Morales, o envio de 130 soldados dominicanos para ajudar na segurança do país, um grupo de cerca de cem haitianos gritava do lado de fora da Polícia Judiciária, onde funciona provisoriamente o governo: ¿Fale para o seu povo, René Préval! Queremos emprego, não esmola!¿.
Com o Haiti aos poucos retomando a normalidade quase duas semanas após a devastação do terremoto, mais e mais haitianos, sentindo-se excluídos e desamparados por um governo em colapso diante do caos, querem que o projeto de reconstrução em gestação pelo governo e pelos organismos internacionais os inclua.
Para os estudiosos do país, se o projeto de reconstrução não cooptar os haitianos e incluílos em massa nos trabalhos, as chances de sucesso serão pequenas. Após anos de colonizadores, ditadores e interventores internacionais dizendo ao povo haitiano o que fazer, destacam, é a hora de um pacto político colocar os haitianos no comando do Haiti. Fala-se em um canteiro de obras, de estradas a escolas, de hospitais a repartições públicas, mas ainda é incerto o quanto o país poderá atrair investimentos estrangeiros suficientes para gerar empregos estáveis para a população.
¿ O problema do Haiti é dos haitianos e a solução também. A população precisa fazer parte desse esforço ¿ diz o representante da OEA no Haiti, o brasileiro Ricardo Seitenfus, autor do livro ¿Haiti, a soberania dos ditadores¿. Para ele, a tarefa deve começar com o uso da tragédia como um estímulo para um pacto social que sensibilize as elites e os políticos haitianos a se unirem pela reconstrução. ¿ As oito vezes em que o Haiti sofreu intervenções estrangeiras desde 1990 foram por conta de crises derivadas de problemas políticos.
A elite social e política haitiana é individualista e afasta os haitianos das decisões. Agora, precisa estar no centro de qualquer projeto.
Obras de recuperação gerarão emprego
Vontade de participar ¿ e necessidade ¿ não faltam nessa tragédia. Diariamente, centenas de haitianos se concentram em frente às bases militares estrangeiras, às embaixadas e ao aeroporto se oferecendo para trabalhar em qualquer coisa que lhes garanta uma renda qualquer. Alguns trabalham até mesmo em troca de comida.
¿ Precisamos de comida, água e casa porque perdemos tudo, mas o ideal seria que tivéssemos emprego ¿ diz o haitiano Louis Joseph, de 32 anos, na fila na porta da Base General Bacellar.
O ministro da Fazenda do Haiti, Ronald Baudin, diz que a prioridade é a reconstrução do governo e da infraestrutura do país, danificados pelos tremores. Mas o processo tem de ser conduzido e administrado pelos haitianos, ainda que, por ora, a discussão sobre os recursos e o formato da reconstrução esteja ocorrendo mais fora ¿ nos salões da ONU, em Nova York, em eventos como o Fórum Mundial de Davos, que começa amanhã na Suíça, ou no encontro dos doadores, em Montreal ¿ do que em Porto Príncipe.
¿ Nossa ideia é estimular as obras de reconstrução porque elas geram muito emprego para uma força de trabalho que não é exatamente qualificada, como a haitiana ¿ diz o ministro Baudin, replicando uma estratégia usada pelo governo da China para dar renda a milhões de chineses sem qualquer qualificação.
Passado o clima de emergência que tomou a capital, o ministro da Educação, Joel Jean-Pierre, fez o balanço do desastre: 50% das escolas do país e suas três principais universidades foram destruídos pelo terremoto.
¿ O sistema educacional foi destruído, o que significa um dos maiores desafios do Haiti para tocar o seu projeto de reconstrução ¿ disse ele.
¿¿ Afinal, o que se pode esperar do futuro de uma população sem educação? A ONG Save the Children e o governo já preparam um plano emergencial para a formação de professores, uma das maiores dificuldades para a retomada da normalidade na vida escolar.