Título: A culpa é da natureza?
Autor: Travassos, fernando Cariola
Fonte: O Globo, 26/01/2010, O País, p. 7

Écomum na entrada do verão ocorrer uma série de acidentes naturais, decorrente do aumento de precipitação como, ultimamente, em São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Num olhar mais objetivo, nota-se a mão do homem agravando esses acidentes. Como ação omissiva pode-se alinhar a ausência de fiscalização do poder público que deveria impedir a construção de moradias em lugares de risco, como aqueles de Angra dos Reis. No que se refere às estradas, tem-se fiscalização deficiente que, por negligência, no mínimo, ou má-fé, afrouxa a aderência da execução da obra ao que foi projetado. O mesmo se dá em relação às obras de drenagem, mal dimensionadas, associado à obstrução do escoamento pelo lixo não retirado ou não reprimido.

Verifica-se também um total desprezo dos políticos e, consequentemente, de seus subordinados do setor público, pela palavra ¿manutenção¿. Vemos inaugurações suntuosas, com recursos do Erário, geralmente em períodos pré-eleitorais, deixando-se a manutenção, que não é retumbante nem angaria votos da massa, para o próximo governo, o qual, seguindo essa mesma cultura, deixa os equipamentos públicos em deterioração. Após as inaugurações, estradas, diques, parques, praças, viadutos etc. não têm manutenção adequada, até chegarem a uma situação crítica, para em outro mandato virem outras inaugurações, o novo parque, a nova estrada etc., sempre com custo superior à manutenção que poderia ter ocorrido. Talvez houvesse esperança se um abnegado grupo de membros do Poder Legislativo estabelecesse, em lei, no orçamento de obras públicas, a exigência da manutenção futura, com dotação orçamentária e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, pelos Tribunais de Contas. Sonho? Sim, pois em nosso país não basta ter leis e sim fazer com que sejam cumpridas. No Brasil a lei é condição necessária mas não suficiente.

A ação comissiva da mão do homem decorrente da deficiente fiscalização fica evidente na construção de moradias em áreas de risco. No caso de Angra, e de outras cidades montanhosas, não é necessário ser engenheiro civil para ver a precariedade das construções na área urbana, no alto das encostas, com arruamento, calçadas etc., esperando o momento de deslizar, pelo reiterado e cumulativo desafio à natureza. Fora da área urbana, geralmente, os terrenos compreendem desde a faixa inferior até a linha de cumeada da encosta correspondente. Ou seja, quem adquire um terreno à beira-mar, em Angra dos Reis, por exemplo, é dono de sua projeção até o cume, com toda a mata nativa. Além da construção no sopé envolver risco, este aumenta de forma crítica com a exploração ou modificação das condições da mata acima, como a plantação de bananeiras, que retêm água e possuem raízes rasas, e a instalação de caixas-d¿água, por exemplo. Uma caixa-d¿água de 10 mil litros, em encosta, além de implicar o desmatamento para sua colocação, apoia no terreno uma grande massa de 10 toneladas, que contribuirá para arrastar encosta abaixo a terra que deveria estar entremeada de raízes de mata nativa.

A única solução plausível para a população mais humilde e sem defesa é a via judicial, com o auxílio do Ministério Público. Somente a Ação Civil Pública e a Ação de Responsabilidade Civil, e eventualmente Criminal, sobre os responsáveis diretos e indiretos, terão o poder de punir com reparações pecuniárias tais indivíduos, afetando seus patrimônios, não o Erário. Por conseguinte, ficará mais vantajoso fiscalizar a obra para que adira a um projeto igualmente adequado e fazer a manutenção correspondente, ao invés de permanecer na conduta em vigor. Será preciso denunciar e punir exemplarmente, para que o risco dos potenciais infratores aumente, como feito nos países desenvolvidos. Exagero? Não; o que está em jogo é a vida de quem pagou adiantado, com impostos, ou aluguéis e diárias, para sofrer o risco de morrer. Será possível? Possível é, mas a probabilidade...