Título: O Haiti antes e depois do terremoto
Autor: Conde, Miguel
Fonte: O Globo, 24/01/2010, O Mundo, p. 34

O Brasil é um ator no drama haitiano desde 2004, quando passou a chefiar a parte militar da Missão da ONU para a Estabilização do Haiti (Minustah). A responsabilidade do país na conjuntura atual é ainda mais importante. Para discuti-la seriamente é crucial ter um diagnóstico da situação, conhecer o Haiti de antes do terremoto. Três elementos que o drama atual põe em evidência de forma exacerbada não são novidade: o peso das forças estrangeiras (outros países, entidades multilaterais, ONGs), a denúncia da ausência do Estado haitiano, e a necessidade urgente de ajuda à população.

A relação entre estes elementos constituiu um sistema de produção de pobreza e desigualdade que se retroalimenta há décadas. Sem levar isso em consideração, o debate público sobre o futuro do Haiti estará mal colocado e as políticas da comunidade internacional (dos governos, das agências multilaterais e da sociedade civil), por mais bem intencionadas que sejam, correm o risco, mais uma vez, de fracassar ou de atingir objetivos limitados e pouco sustentáveis, contribuindo para a reprodução do drama humano que a fúria da natureza parece ter potenciado a níveis dantescos.

Sabe-se que a crise haitiana é de longa data e que ela se agravou de forma notável após o fim da ditadura dos Duvalier (1957-1986). Muitas das imagens veiculadas pela mídia para descrever a tragédia destes dias poderiam ser de antes do terremoto. Porto Príncipe já era uma cidade quase sem eletricidade e sem água. O abastecimento alcançava uma porção ínfima da população, só alguns bairros, poucas horas por dia, alguns dias da semana. A crise alimentar já era gravíssima.

A concorrência entre as forças externas que intervêm no país tampouco é novidade. Já desde o século XIX o Haiti teve um importante papel na disputa entre potências como França, Espanha, Inglaterra e EUA. A França proclama até hoje ¿laços históricos¿ com a antiga colônia. Os EUA, que já ocuparam o Haiti entre 1915 e 1936, e na década de 1990, até hoje, mais de 20 anos após o fim da Guerra Fria, mantêm naquele miserável país uma das maiores embaixadas do mundo. Com argumentos que vão da importância da imigração haitiana nos EUA até razões de ¿segurança nacional¿, quem se encarregava de cuidar do Haiti no governo americano era o Departamento de Segurança Interior e não o Departamento de Estado, responsável pelas relações exteriores ¿ como se o Haiti fosse parte do território americano. Antes do terremoto, estava claro que, às vezes de forma coordenada e muitas outras em tensa concorrência, duas forças político-militares atuavam no Haiti: a ONU e os EUA.

Nas centenas de instituições humanitárias, como nas instâncias do governo e na infinidade de associações comunitárias, havia no Haiti milhares de pessoas bem intencionadas, generosas, solidárias, que desenvolviam ideias ousadas, aproveitando a energia fantástica da população e, nos últimos anos, a grande novidade da estabilidade política e da redução da violência ¿ não só devido à presença da Minustah, mas também às ações de organizações da sociedade civil, inclusive do exterior, como o Viva Rio. A onda de solidariedade criada nestes dias está ancorada em décadas de trabalho comunitário. O sismo destruiu vidas e muitas iniciativas e projetos bem-sucedidos, agravando a penúria causada pelo desastre.

Diferentemente do estereótipo negativo que pesa sobre o Haiti há pelos menos 200 anos (quando os escravos de Saint Domingue ousaram desafiar os cânones da época, declarando-se sujeitos políticos autônomos e fundando a nação), e ao contrário das dificuldades evidentes em organizar a vida política nacional e a administração pública de forma transparente e eficiente, a população sempre esteve ansiosa por construir formas alternativas de vida coletiva. Os haitianos têm uma riquíssima tradição de organização comunitária: comitês, associações, redes de famílias extensas garantem a sobrevivência das pessoas, o suprimento de alimentos, o funcionamento de escolas. É esse caldo social da solidariedade que permite compreender como não há mais violência diante da catástrofe de hoje, das pilhas de cadáveres nas ruas, das centenas de milhares de desaparecidos, desabrigados e feridos, da escassez de produtos de primeira necessidade, da demora na chegada da ajuda humanitária.

A dor infinita produzida por esta catástrofe exige pensar seriamente o futuro do Haiti. Boa parte das razões do drama haitiano que o terremoto colocou em escala incomensurável estava presente antes. É preciso aceitar que, neste momento, a vida haitiana não está organizada segundo o paradigma do Estado soberano. Isso obriga a definir novas atribuições da comunidade internacional, criando órgãos executivos com poder de decisão. Mas não se trata de forma alguma de negar o direito do povo haitiano a gerir seu próprio futuro. Ao contrário, as associações e as lideranças políticas e comunitárias têm de participar do desenho de formas novas de gestão da vida coletiva. A avaliação das ações passadas e o plano das ações futuras da Minustah, do governo brasileiro e da sociedade civil do nosso país no Haiti precisam de uma discussão clara e sem hipocrisias sobre o que está em jogo nesta hora.

FEDERICO NEIBURG é antropólogo, pesquisador do CNPq, professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ