Título: Na crise, o paradoxo do ser humano
Autor: Conde, Miguel
Fonte: O Globo, 24/01/2010, O Mundo, p. 34

Tragédia numa sociedade já abandonada desperta de solidariedade a violência

HOMEM ARREMESSA um corpo no necrotério geral de Porto Príncipe

HAITIANOS BRIGAM por comida roubada de uma loja destruída no terremoto

Num país cuja história pode ser contada como um longo processo de destruição (pela exploração colonial, opressão política, devastação ambiental ¿ a lista se estenderia por muitos parágrafos), a vida diária da maioria das pessoas já está mais próxima da luta pela sobrevivência do que dos confortos da civilização. Mas nas condições extremas resultantes do terremoto que atingiu o Haiti, agravadas pelo abandono em que vivem os pobres do país, a precariedade costumeira se converteu em carência quase absoluta, obrigando a população a fazer o possível para lutar pela vida: mortos foram enterrados sem os ritos tradicionais, supermercados foram saqueados, até orfanatos foram roubados.

A possibilidade de irrupção da barbárie tem sido invocada pelos americanos para justificar a prioridade dada ao envio de militares sobre o de médicos. Caixas de alimento foram jogadas de aviões dos EUA, como se eles sobrevoassem um campo de guerra. Os próprios haitianos, porém, tiveram reações variadas à situação de ruína em que se encontram. Entre atos de violência e brigas nas filas de comida, os habitantes também deram demonstrações de solidariedade, às vezes mais rápidas e eficientes do que a assistência das forças internacionais. A tragédia expõe os impulsos paradoxais do ser humano diante do colapso social, afirma o psicanalista Chaim Katz.

¿ Quando se perdem, no modo imediato (como o do terremoto do Haiti), as referências sígnicas e simbólicas que nos constituem, o psiquismo tende a se desligar delas e procurar, rapidamente, inconscientemente, outras ligações. O pânico dispersa os processos psíquicos estabelecidos e acompanha a disposição dos eventos, mas também reúne os elementos dispersados ¿ diz Katz, autor de ¿Ética e psicanálise¿. ¿ Os chamados elementos sociais habituais (laços familiares, poderes instituídos, ordens introjetadas, supereu ativo etc.) se rebaixam, ao menos temporariamente, perdem sua importância e se substituem por outros ¿elementos¿ pulsionais, o chamado à sobrevivência, a proteção do corpo próprio, mas também a compaixão pelos outros, cuidados e proteção com a alteridade. Movimentos opostos simultâneos, de desagregação e reagregação...

Pesquisadores brasileiros da Unicamp presentes no Haiti relataram nos últimos dias iniciativas de distribuição de água e comida tomadas pelos próprios haitianos, ainda pouco notadas em comparação às imagens mais dramáticas que têm circulado pela imprensa mundial. Katz e o psicanalista José Renato Avzaradel concordam que as reações dos haitianos não podem ser lidas como reflexos da natureza humana, apenas, mas devem ser situadas dentro do contexto histórico em que ocorrem.

¿ O problema não é só o terremoto, é o terremoto numa sociedade devastada ¿ afirma Avzaradel, organizador do livro ¿Linguagem e construção do pensamento¿. ¿ É diferente quanto uma tragédia atinge um lugar em que as pessoas têm a percepção de que há um amparo social. No Haiti, isso não existe. É uma população abandonada.

Os efeitos da tragédia, acrescenta, não são apenas físicos, mas também mentais. Os sobreviventes de eventos do tipo muitas vezes têm que lidar com traumas e com a chamada ¿culpa do sobrevivente¿: a angústia por ter escapado enquanto pessoas amadas morreram. Diretor do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, Marco Antonio Coutinho Jorge afirma que um terremoto como o do Haiti se encaixa na definição psicanalítica de um acontecimento traumático: um evento inesperado que ameaça a integridade do sujeito e do qual ele não consegue dar conta simbolicamente, ou seja, não consegue transformar em palavras. Nesse caso, mesmo quem está à distância foi afetado, acredita:

¿ Um terremoto desses revela nossa impotência radical diante das forças da natureza. Não é à toa que abalou todo mundo, que está passando na televisão toda hora. Nós nos identificamos com esse sofrimento, porque sabemos que também estamos sujeitos a ele ¿ diz Jorge, que é professor da pós-graduação em psicanálise da Uerj. ¿ Nessas horas o homem percebe que ele tem mais força em grupo do que isolado, surgem os gestos de solidariedade.

A psicanalista Maria Rita Kehl, autora de ¿Função fraterna¿, lembra que o trauma só se resolve pela fala, e que o perigo numa situação dessas é que a narrativa sobre a tragédia construída pelos meios de comunicação tire das vítimas a sua voz, tratando-as mais como coisas do que como sujeitos.

¿ Essa abordagem da vítima como nada mais que vítima me preocupa. A cobertura que só aborda as manifestações mais visíveis da dor pode acabar apresentando as vítimas como não-sujeitos, diminuindo nossa capacidade de sentir empatia.