Título: Tropas no Haiti usam gás para conter tumulto
Autor: Gois, Chico de
Fonte: O Globo, 27/01/2010, O Mundo, p. 28
Disputa por alimentos causa muita confusão, mas outras áreas de Porto Príncipe retomam a normalidade
PORTO PRÍNCIPE. Tropas brasileiras que participavam com soldados americanos da distribuição conjunta de alimentos e água, ontem, em frente ao Palácio Presidencial, usaram gás lacrimogêneo e de pimenta para dispersar a multidão que disputava a comida. O incidente ocorreu por volta de 11h e se deu porque os alimentos foram insuficientes para atender a todos na Champs de Mart, a praça em frente ao palácio.
Foram entregues oito toneladas de arroz, do Programa Mundial de Alimentos, da ONU. O coronel Alan Santos, responsável pela comunicação social do batalhão brasileiro no Haiti, informou que o armamento não-letal foi utilizado para impedir que houvesse um tumulto maior e que alguém se machucasse.
Depois da aplicação do gás, a distribuição recomeçou sem incidentes, segundo ele. No início da operação, o Brasil garantia a segurança com cerca de 60 homens.
Depois do tumulto, foi chamado reforço.
Na semana passada, tropas brasileiras fizeram, no mesmo lugar e sem enfrentar problemas, a maior distribuição de alimentos desde que o terremoto do dia 12 matou centenas de milhares de pessoas.
Haitiano resistiu duas semanas nos escombros
Em outros lugares da cidade, a rotina começa a ganhar um certo ritmo, embora a maioria dos edifícios tenha se transformado em ruína e boa parte do comércio ainda permaneça fechado.
Mas à noite, quando a cidade é toda escuridão, iluminada raramente por uma vela aqui outra acolá, é que se nota que normalidade é uma palavra que os haitianos demorarão a falar.
Por todo lugar, o que se vê são amontoados de gente dormindo espremida sobre um lençol que serve como colchão.
Ontem, duas semanas após o terremoto, equipes americanas retiraram dos escombros um homem de 35 anos ainda com vida. Apesar de muito abatido, Rico Dibrivell não parecia ter ferimentos graves.
Por volta das 9h, o Universel Super Market já está funcionando.
Com artigos mais voltados à classe média haitiana, como bebidas importadas e eletrônicos, além de carne, leite e iogurte, o mercado está quase vazio, não fosse um ou outro estrangeiro em busca de marcas conhecidas de produtos.
Pela cidade, as maiores filas ainda são para retirar dinheiro.
Nos caixas eletrônicos, a espera pode variar de 30 minutos a uma hora. Mas nem todos os bancos conseguem oferecer todos os serviços. No Unibank da Avenida Delmas, uma das principais de Porto Príncipe, os clientes não conseguem retirar o dinheiro que parentes no exterior, sobretudo nos EUA, enviam. O sistema de informática ainda não voltou a funcionar plenamente.
¿ Temos atendido umas 500 pessoas diariamente ¿ disse o gerente Johnny Sainhl.
O comércio informal, uma característica da cidade, mesmo antes do terremoto, voltou a vender seus produtos logo após o tremor. Pelas ruas, sobram vendedores nas calçadas, ao lado de entulhos, e falta lugar para os pedestres, que têm de se aventurar no meio dos carros e do esgoto. É possível comprar de tudo: de remédios a pilhas, passando por xampus e frutas.
Depois das 20h, quase ninguém perambula pelas ruas, como acontece durante o dia. As famílias voltam para o local onde antes eram suas casas, mas não têm onde descansar. Elas se juntam, os filhos no meio dos pais, procurando cobrir-se com o que sobrou de roupas. Para garantir alguma segurança, utilizam blocos de cimento que retiraram das paredes destruídas, e fazem uma barreira. Carros também servem, separando-os do meio da rua e protegendo-os de atropelamentos.
À noite, a entrega de alimentos prossegue. Quando o caminhão com os mantimentos chega ¿ duas ou três latas de sardinha e água ¿, alguns levantamse, sonolentos, para formar uma fila, como ordenam os militares.
O alimento dará para um dia, dois no máximo, ainda mais para quem tem família. Mesmo com tão pouca doação, os haitianos sorriem e agradecem. E voltam a dormir no chão e na rua, na dura rotina que perdurará por tempo indeterminado.