Título: Um Haiti mais miserável num país já pobre
Autor: Scofield Jr. , Gilberto
Fonte: O Globo, 16/01/2010, O Mundo, p. 27

Governo local fala em 100 mil a 200 mil mortos. Ajuda demora a chegar e população disputa provisões

PORTO PRÍNCIPE. Um Haiti ainda mais miserável começa a se formar dentro do já empobrecido Haiti após o terremoto que, na tarde da terça-feira passada, destruiu milhares de casas e apartamentos dentro e ao redor da capital, Porto Príncipe, matando, segundo o governo haitiano, entre 100 mil e 200 mil pessoas. Mais de um milhão de desabrigados que ocupam espaços abertos, como praças, campos de futebol e margens de rios - um terço da população estimada da capital.

Somados aos desabrigados em cidades menores também afetadas pelo tremor, entidades humanitárias estimam que o exército de deslocados chegue a dois milhões de pessoas, que não apenas não têm abrigo para dormir, mas também precisam desesperadamente de comida, água, remédios e locais onde fazer a higiene pessoal.

Maior parte dos mortos ainda precisa ser enterrada

Autoridades haitianas divergiam ontem sobre o total de mortos, mas as cifras são catastróficas. Segundo o secretário de Estado de Segurança Pública, Aramick Louis, 140 mil morreram. Já o ministro do Interior, Paul Antoine Bien-Aime, disse que a cifra total ficará entre 100 mil e 200 mil, embora destaque ser difícil fazer a previsão.

- Estamos tirando os corpos das ruas e colocando-os em fossas coletivas. Enterramos 40 mil pessoas. Acreditamos que ainda haja outras 100 mil (mortas) - disse Louis. - Há muita gente sob os escombros.

O número pode crescer caso os muitos sobreviventes com ferimentos graves e membros necrosados não recebam tratamento imediato.

Em todas as ruas nos bairros mais afetados de Porto Príncipe - o centro da cidade, Bel-Air, Cité Soleil, Pétionville (onde fica o prédio da embaixada brasileira no Haiti, seriamente afetado pelos tremores), Tabarré, entre outros - os haitianos correm para os espaços abertos e improvisam tendas com lençóis e plásticos, além de velhas barracas oferecidas por ONGs, armadas em meio a lixo, animais e dejetos humanos, num cenário apocalíptico.

- Perdemos tudo, e minha mulher precisa de ajuda porque está ferida. Como temos medo de novos tremores e não temos para onde ir, decidimos ficar aqui na praça com um grupo de amigos e passamos a viver de doações - lamentou o haitiano Nasson, que com a família do amigo Jimmy, os dois de 30 anos, brigavam por um pedaço de pão distribuído por uma van com duas freiras na tarde de ontem na Praça Delles Deux, no pobre bairro de Bel-Air, que deve abrigar milhares de famílias.

A sede operacional do grupo Viva Rio, no Centro de Porto Príncipe, a área mais afetada, virou um enorme depósito de desabrigados e feridos que não possuem mais casas ou cujas casas não apresentam segurança suficiente para que a família ali volte a morar. De dia, diz Valmir Faquini, coordenador da ONG carioca, o lugar está abrigando mais de mil pessoas, número que sobre para cinco mil durante a noite, quando a falta de luz obriga os desabrigados a saírem das ruas por medo da violência.

- A situação é trágica. Sabemos que o trabalho de reconstrução das casas leva tempo, mas o governo e a ONU estão agindo muito lentamente, seja providenciando barracas decentes para a população, seja na distribuição de alimentos e água - dizia ele, que juntamente com um grupo de cerca de 20 haitianos que trabalham com a ONG tentava organizar uma fila de 50 pessoas em frente a um caminhão-pipa com água potável.

Faquini afirma que, a despeito do nervosismo e desespero da população, não há registros de violência extrema na capital, onde o Viva Rio está há cinco anos. Segundo ele, os episódios de tensão ocorrem quando há distribuição de comida, água ou combustível - todos os postos de gasolina da cidade fecharam, obrigando muitos haitianos a cruzarem a fronteira da República Dominicana para conseguir abastecer - e o desespero para garantir a provisão de cada família cresce, terminando em saques ou quebra-quebras.