Título: Direitos desumanos
Autor: Martins Filho, Ives Granda
Fonte: O Globo, 18/01/2010, Opinião, p. 7
O decreto presidencial 7.037/09 tem gerado muita polêmica porque quis incluir na Declaração Brasileira de Direitos Humanos muitos elementos de extrema controvérsia, a par de desdizerem do sentido do que sejam Direitos Humanos.
Realmente, nosso PNDH-3, em que pese 90% de seu conteúdo ser altamente positivo, não faz jus, naquilo que incluiu de realmente atentatório aos Direitos Humanos, à sadia tradição das Declarações Universais, nem da Revolução Francesa (1789), nem da ONU (1948).
Com efeito, se a vida é o primeiro e principal direito humano fundamental, de 1ª geração, e assegurado desde a concepção (art. 4º, 1) pelo Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos (1969), ratificado pelo Brasil, destoa absolutamente da tradição a orientação incluída no PNDH-3 de ¿apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos¿ (Diretriz 9, Orientação Estratégica III, g).
Como se o nascituro, com código genético distinto e vocacionado para o nascimento, ainda pudesse ser considerado como mero órgão da mãe, passível de amputação! Seria de se perguntar se a referida proposta não conflita com a saudável Diretriz 6, que prevê ¿promover e proteger os direitos ambientais como Direitos Humanos, incluindo as gerações futuras como sujeitos de direitos¿. Ora, se o próprio PNDH3 quer dar tratamento aos não nascidos como sujeitos de direitos, como deixa ao arbítrio da mãe o decidir se a criança concebida terá, ou não, direito de nascer? Outra incongruência notória do PNDH-3 é, na mesma Diretriz 7, prever louvavelmente o combate e a erradicação do trabalho escravo (VII), por representar o tratamento do ser humano como objeto e mercadoria, e, ironicamente, no item exatamente anterior, falar em ¿garantir os direitos trabalhistas e previdenciários de profissionais do sexo por meio da regulamentação de sua profissão¿ (D.
7, VI, n), quando o reconhecimento legal da prostituição atenta contra a dignidade da mulher, considerada como mero objeto de prazer. Quais os pais que desejam que sua filha seja prostituta? Qual a mulher que vende o próprio corpo por opção? E a diretriz trata da matéria dentro do capítulo que assegura a todos um ¿Trabalho Decente¿! Não é por menos que o programa se proponha, para tanto, ¿realizar campanhas e ações educativas para desconstruir os estereótipos relativos às profissionais do sexo¿ (D. 9, III, h). Ou seja, com o uso de eufemismos, procura mostrar a prostituição como uma atividade boa e decente, igual a qualquer outra! Se não é possível erradicar essa triste realidade, o programa deveria promover ações para retirar a mulher dessa situação, a par de, como o fez, proteger as prostitutas contra as violências de que possam ser objeto (a própria prostituição já é uma violência contra a mulher) e assegurar seu acesso aos programas de saúde (D. 7, IV, q).
Mas o eufemismo maior, digno do ¿Ministério da Verdade¿ da obra clássica de George Orwell ¿1984¿, é o que propõe a instituição da ¿Comissão Nacional da Verdade¿, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política (D. 23, I, a), ¿incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares, voltada para a educação em Direitos Humanos e que reconstrua a história recente do autoritarismo no Brasil, bem como as iniciativas populares de organização e de resistência¿ (D. 22, II, c) e ¿desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão¿ (D. 24, sobre a ¿Construção Pública da Verdade¿, I, f). Na disputa política desse período ninguém foi santo: nem militares, nem guerrilheiros. Mas reescrever a história, para canonizar os últimos e anatematizar os primeiros também faz lembrar outro livro de Orwell, ¿A Revolução dos Bichos¿, em que o 1º mandamento passa a receber nova versão: ¿Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros¿.
Sem mencionar outros temas altamente polêmicos para serem incluídos reconhecidamente como Direitos Humanos, tais como o casamento entre homossexuais e o seu direito de adoção (D. 10, V, b e c), desconsiderando o direito da própria criança, e a proposta de ¿desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União¿ (D. 10, VI, c), desconsiderando que uma das manifestações mais humanas é a da religiosidade e da preservação de seus valores culturais mais profundos, como são, em nossa pátria, os da civilização cristã...
Essas inclusões fazem sombra a aspectos tão positivos e inovadores quanto são os de incentivar a economia solidária e o cooperativismo (D. 4, I, e), de combater melhor os crimes eleitorais (D. 7, IX, b e c) e a pornografia infanto-juvenil na Internet (D. 8, IV, f).
Enfim, o PNDH-3, pelas distorções tópicas que apresenta, se não forem oportunamente corrigidas, não obstante o qualificadíssimo planejamento global, poderá receber o título de ¿Plano Nacional dos Direitos Desumanos¿, por desconhecer a natureza humana e suas exigências.
Na disputa política ninguém foi santo: nem militares, nem guerrilheiros
IVES GANDRA MARTINS FILHO é ministro do Tribunal Superior do Trabalho e membro do Conselho Nacional de Justiça.