Título: O julgamento da Anistia
Autor: Freitas, Guilherme; Conde, Miguel
Fonte: O Globo, 09/01/2010, Prosa & Verso, p. 6
Conflito no governo reabre discussão sobre relação do país com o passado ditatorial
HOMEM É PRESO durante confronto com a Polícia Militar após missa em memória de Edson Luís, estudante morto pela polícia em 1968
No último dia 21 de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto instituindo a terceira etapa do Programa Nacional de Direitos Humanos. O ato foi pouco noticiado e teria passado despercebido pela maioria das pessoas, não fosse pela reação do ministro da Defesa, Nelson Jobim. Alegando que o programa abria caminho para a revisão da Lei de Anistia, Jobim apresentou a Lula uma carta de demissão assinada por ele e pelos comandantes das Forças Armadas. A pressão fez com que o presidente prometesse rever o decreto, decisão que deixou para depois das férias.
O episódio expôs uma divisão interna do governo, botando em lados opostos Jobim e o ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e também a persistência de uma questão controversa na sociedade brasileira: como lidar com as violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar?
Não é apenas entre políticos que o tema é considerado espinhoso. Procurados pelo Prosa & Verso, três dos mais importantes cientistas políticos brasileiros preferiram não se manifestar publicamente sobre o assunto. Nesta edição do Prosa & Verso, os historiadores Daniel Aarão Reis e Carlos Fico dizem que o temor em torno do debate é exagerado, e apresentam eles mesmos seus argumentos a favor (Reis) e contra (Fico) a revisão da Lei de Anistia. Os dois afirmam, no entanto, que a ideia de que a revisão implicaria também em processos contra integrantes dos grupos armados de esquerda se baseia numa equivalência falsa.
Ambos defendem ainda uma ampla discussão sobre esse período da história brasileira. A posição é partilhada pela socióloga argentina Elizabeth Jelin, também entrevistada nesta edição do caderno. Diretora de uma série de publicações sobre a forma como as sociedades lidam (jurídica e simbolicamente) com a memória das ditaduras na América do Sul, Jelin afirma que os acordos políticos, embora sejam importantes para garantir a transição democrática após o fim de regimes autoritários, são conjunturais e não podem impedir que um país discuta seu passado.
Nos países vizinhos, debate impulsionado por comissões
Ao contrário dos outros países sul-americanos que viveram regimes ditatoriais nas décadas passadas (como Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru), o Brasil jamais promoveu um debate público sobre esses momentos de profunda cisão social. Nos países vizinhos, esse debate frequentemente foi impulsionado pela criação de comissões que investigavam os abusos cometidos pelos regimes ditatoriais.
A criação de uma Comissão Nacional da Verdade é um dos dois pontos do decreto assinado por Lula que provocaram queixas entre os militares. A diretriz 23 do documento determina a criação até abril de 2010 de uma comissão "plural e suprapartidária (...) para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto de repressão política" de 1964 a 1985. Outro ponto polêmico é a diretriz 25, que ordena a criação de projetos de lei propondo a "revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações". Esse ponto, o último do projeto, foi interpretado como uma brecha para uma possível revogação da Lei da Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente Figueiredo depois de aprovada no Congresso por 206 votos a 201.
Ainda tímida no meio político, a discussão sobre a Lei de Anistia já ocorre na Justiça. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) argumentando que a anistia não pode ser aplicada aos agentes da ditadura. Ministros do STF têm posições divergentes sobre o tema (leia box na página 3).
O Programa Nacional dos Direitos Humanos tem orientação distinta dessa ação da OAB. Em vez de propor que a Lei de Anistia seja reinterpretada, o Programa abre caminho para que ela seja revogada, sob argumento de que está em desacordo com tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário (como o Estatuto de Roma), e que definem a tortura como crime contra a Humanidade. O entendimento de que nesses casos o direito internacional se sobrepõe às leis nacionais fundamentou ações recentes como o processo movido pela Espanha contra o ditador chileno Augusto Pinochet.