Título: Trote violento é rotina na universidade
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 07/02/2010, O País, p. 12

Enquanto projeto contra a prática é esquecido no Senado, crimes se sucedem sem punição

SÃO PAULO. A agressão ao estudante da Unicastelo pelos veteranos, em Fernandópolis, no interior de São Paulo, reacendeu a luz vermelha contra os trotes violentos. Em todo início de ano letivo, a recepção aos calouros nas universidades traz histórias dramáticas de agressões, humilhações e até mortes. Em São Paulo, o Ministério Público Federal fez uma série de recomendações a mais de 160 instituições de ensino superior, e cobrou, de cada universidade, uma política antitrotes.

A chinesa radicada no Brasil Yen Hsuen amarga, pelo 11oano, a dor do dia em que seu filho, Edison Hsuen, morreu afogado na piscina do centro acadêmico da Faculdade de Medicina da USP. Os suspeitos foram inocentados, e a universidade não precisou pagar a indenização pedida pela família Hsuen.

Aluno levou tesourada por resistir ao corte de cabelo Ano passado, o marido de Yen morreu. Ela agora mora só e com as despesas apertadas, já que perdeu um filho que poderia ter se formado médico e ser o provedor da família. Como a ação de indenização foi movida contra a USP, mas a área da piscina estava sob os cuidados do centro acadêmico, a Justiça entendeu que a universidade não deveria ser condenada.

A morte de Edison Hsuen, em 1999, não é a única tragédia provocada pelos trotes violentos, e tampouco mudou essas práticas no meio acadêmico. No ano seguinte, um calouro da Faculdade de Educação Física da UniTau, de Taubaté (SP), sofreu queimaduras no rosto ao ser pintado com tinta spray. Em 2002, um aluno da Unisanta, de Santos (SP), levou uma tesourada no abdômen porque não queria que cortassem seu cabelo.

Em 2006, um aluno da Universidade Federal de Uberlândia (MG) levou mais de 250 picadas de insetos depois de ser obrigado a deitar sobre um formigueiro.

Os responsáveis pelo trote foram expulsos. Ano passado, Bruno César Ferreira entrou em coma alcoólico e foi espancado pelos veteranos de medicina veterinária da Faculdade Anhanguera, em Leme (SP).

Embora existam casos comprovados de abusos e mortes, o Congresso guarda na gaveta, há 15 anos, o projeto de lei que regulamenta o trote universitário.

No ano passado, foi aprovado na Câmara um projeto do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) que não criminaliza o trote violento, mas impõe sanções aos veteranos, como multa de até R$ 20 mil e suspensão acadêmica.

Também obriga as universidades a combater o trote violento e a estimular o ¿trote solidário¿.

Mas o projeto ainda aguarda votação no Senado.

¿ Não entendo o motivo dessa demora. Espero que casos como o de Fernandópolis, em que pese a tristeza do que ocorreu, pelo menos sirvam para pôr o projeto em votação. Para mim, uma lei que aborde os trotes vai coibir, e muito, a violência ¿ diz o deputado.

Para deputado, projeto não afeta autonomia universitária O primeiro projeto sobre o trote violento ficou parado na Câmara por 14 anos e só ano passado foi anexado à proposta de Sampaio. Para o deputado, o projeto não afeta a autonomia universitária, uma das críticas de parlamentares: ¿ O que está em jogo é a integridade física dos estudantes.

A lei é um ônus pequeno para a universidade e não interfere em sua autonomia acadêmica, financeira ou técnica.

Especialista no assunto, o pesquisador Antônio Ribeiro de Almeida Jr., da Escola de Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, vê erros no projeto de lei. Para ele, não há trote solidário.

¿ A lei é equivocada. Ela diz: ¿Vamos coibir o trote violento e promover o solidário¿. A palavra trote deveria ser banida do vocabulário acadêmico. Trote é violência. Há violência solidária? Essa modalidade de trote solidário é uma maneira de esconder o problema ¿ diz Almeida Jr.

A Esalq está entre as faculdades que têm mais histórico de trotes, segundo o pesquisador.

Em suas pesquisas, Almeida Jr. e o professor Oriowaldo Queda pediram aos alunos que dissessem quais práticas eram violentas nos trotes.

¿ O que é brincadeira para um, é violência para outro. Não há uma fronteira clara. Por isso, o trote deve ser evitado. Quem aplica o trote impõe ao outro que sua brincadeira seja aceita como se não fosse violenta.

Mais que uma brincadeira de mau gosto que acaba no fim de todo mês de fevereiro, quando todos voltam à rotina das aulas, Almeida Jr. afirma que o trote é um ¿rito de exclusão¿, sempre organizado por grupos com características de máfia.

¿ É uma máfia profissional, que envolve pessoas que, em algumas faculdades, exercem posições de poder. Os trotistas não representam nem 20% dos alunos nas faculdades, mas se impõem pela força e pelo poder ¿ diz ele.

Pesquisador diz que prática é transmitida entre gerações Há, segundo o pesquisador, casos em que a prática do trote passa de geração em geração e envolve vários integrantes de determinadas famílias.

No mundo econômico e social, esse grupo prevalece, favorecendose mutuamente na escolha de empregos e cargos.

¿ É como as fraternidades nos Estados Unidos. O trote não é uma relação entre alunos.

O aluno veterano é só um soldado. E, nas universidades que dão muito status, esse trote fica mais violento.