Título: Arbitragem ou extorsão?
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 05/06/2009, Cidades, p. 23

Golpistas fingem ser juízes para extorquir

Sistema criado para dar solução ágil a conflitos e desemperrar a Justiça se transformou em fonte de lucro para golpistas que usam a função para enganar cidadãos de boa-fé. MP e OAB tentam frear abusos

O juiz vestido de toga e com um martelo nas mãos não é o único com autoridade para resolver conflitos. O sistema de arbitragem, criado há 13 anos, permite a solução rápida de litígios, como dívidas de empresas, inquilinos inadimplentes ou ações de despejo. De forma consensual, duas partes que estão em discordância podem escolher uma pessoa qualificada para analisar a questão. Com base em conversas com os envolvidos, esse árbitro profere uma decisão ¿ que tem força de sentença judicial. Mas esse sistema idealizado para agilizar processos e desafogar a Justiça se transformou em uma grande fonte de lucros para estelionatários. Mais de 80 tribunais arbitrais particulares funcionam hoje no Distrito Federal e, muitos deles, se fazem passar por órgãos públicos para extorquir e enganar cidadãos.

Diante do aumento dos casos de abusos, o Ministério Público do DF e a Ordem dos Advogados do Brasil decidiram se mobilizar para tentar controlar a atuação dessas entidades. As reclamações são relativas, principalmente, ao uso de brasões que se assemelham ao da República. Algumas instituições de arbitragem enviam documentos com expressões como ¿Poder Judiciário Arbitral¿ com símbolos quase idênticos aos do Tribunal de Justiça. Ao receberem comunicados com essas características, muitas pessoas ¿ principalmente as mais humildes ¿ se sentem na obrigação de respeitar e seguir todas as determinações daquele que se autointitula juiz.

Para submeter um caso à arbitragem, é preciso que haja consenso entre as partes. Ninguém pode ser convocado a participar de uma mediação se não tiver interesse. Se os dois ou mais envolvidos concordarem, podem levar o caso para uma câmara de arbitragem ¿ que é obrigada a concluir os processos em no máximo seis meses. Se não houver acordo, o caso vai para a Justiça comum.

Ameaças A aposentada Miracema Aparecida Valente, 49 anos, vendeu seu Gol modelo 2004 no início do ano passado. O comprador esperou mais de seis meses para fazer a transferência e, no momento de mudar a titularidade, resolveu cobrar o IPVA da antiga dona. Miracema recebeu em casa uma intimação de uma entidade chamada Tribunal de Justiça Arbitral do Brasil e Mercosul. A carta, decorada com um enorme brasão, a convocava a participar de uma audiência.

Moradora do Riacho Fundo, Miracema compareceu ao local indicado e sofreu uma enorme pressão para pagar a suposta dívida de R$ 1,1 mil. As pessoas que estavam na sala apresentaram carteiras de identidade de juízes arbitrais e avisaram que o encontro estava sendo filmado. Em caso de inadimplência, diziam, tudo seria colocado na internet. Dias depois, três homens foram à casa da aposentada para cobrar a quantia. ¿Eles disseram que voltariam com a polícia para me prender se eu não pagasse.¿

Para especialistas, a Lei Federal 9.307/96, que institui a arbitragem como forma de resolver litígios, deixa brechas para as irregularidades. Em primeiro lugar, não existe nenhuma entidade responsável por fiscalizar a atuação desses tribunais arbitrais. Além disso, a lei não estabelece detalhadamente como eles devem atuar. Na falta de regras, surgem os abusos.

Mas, para o Ministério Público do DF, as irregularidades registradas são suficientes para que os responsáveis respondam a processos criminais. O MPDF já assinou termos de ajustamento de conduta com essas entidades no passado em que elas se comprometiam a não extrapolar suas competências. Mas, agora, a Procuradoria Distrital dos Direitos do Cidadão e a Promotoria de Defesa dos Direitos do Consumidor querem fechar tribunais com irregularidades e processar os envolvidos em casos de extorsão.

O promotor de Defesa do Consumidor Guilherme Fernandes lembra que algumas entidades de arbitragem usam expressões e termos jurídicos que só poderiam ser adotados pelo Tribunal de Justiça e cometem abuso de poder ao apresentar falsas carteiras profissionais. ¿Eles não podem confeccionar carteiras funcionais porque não existe a carreira de juiz arbitral. Mas sabemos que muitos usam esse instrumento para extorquir e fazer cobranças indevidas¿, destaca.

Os abusos das entidades arbitrais já foram julgados pelo Tribunal de Justiça em ação civil pública. No caso em questão, o Tribunal de Justiça Arbitral do DF foi proibido de usar brasões e expressões jurídicas. O juiz responsável pelo caso, João Luís Fischer Dias, destaca que os casos de estelionato preocupam os magistrados. ¿Os juízes leigos arbitrais não podem se apresentar como funcionários do Estado. As intimações ou mandados feitos pelos árbitros são práticas abusivas¿, diz.

Semelhança O Tribunal de Justiça Arbitral Empresarial do Brasil e Mercosul, que funciona na Cidade do Automóvel, tem como símbolo um brasão, mas o presidente da entidade, Harley de Roure, nega que seja para ludibriar clientes. ¿A logomarca foi inspirada no brasão da República, mas tem 17 pontos que a diferenciam. Não existe nada que proíba essa semelhança.¿

Sobre o caso da aposentada Miracema, ele diz que o processo não passou por sua entidade. ¿Não é a primeira vez que estelionatários usam indevidamente o nome do nosso tribunal. Vou registrar ocorrência sobre o caso¿. Roure não poupa críticas ao Ministério Público. ¿O MP tem que dar nome aos bois, não tem o direito de generalizar.¿