Título: Estado de sítio silencia funeral
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Fonte: O Globo, 26/02/2010, O Mundo, p. 32
Mil policiais cercam povoado e impedem jornalistas estrangeiros de cobrir enterro de opositor HAVANA
Sob a chuva e um forte policiamento, o corpo do preso político cubano Orlando Zapata Tamayo foi enterrado ontem de manhã na localidade de Banes, em Holguín, a 830 quilômetros de Havana, após sua mãe enfrentar agentes de segurança que queriam apressar o velório.
Até o último momento a polêmica e a repressão cercaram o funeral de Zapata, que morreu após uma greve de fome de 82 dias por melhores condições na prisão e pelos direitos humanos.
Os policiais que acompanharam o traslado do corpo de Havana para Banes estavam presentes uma vez mais no cortejo, no povoado fortemente vigiado; na porta das casas de dissidentes, impedindo-os de participarem da cerimônia; e em todos os acessos de Banes, isolando o local do restante do país, no que dissidentes descreveram como ¿um estado de sítio¿.
Cerca de cem pessoas foram presas tentando chegar a Banes.
¿ Queriam que a família enterrasse o corpo em apenas duas horas, mas a família conseguiu negociar para enterrar somente na quinta-feira, sob um verdadeiro estado de sítio ¿ contou Elizardo Sánchez, presidente da Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, por telefone.
Jornais cubanos ignoram morte
Segundo os dissidentes, mais de mil agentes, entre policiais e militares, foram de Havana para o enterro de Zapata, ocupando o povoado de apenas 35 mil habitantes. Apesar de só permitirem que participassem do velório as 30 pessoas que já estavam na casa da família Tamayo quando o corpo chegou, o cortejo que saiu ontem, às 7h, foi ganhando adesões e chegou ao cemitério com cerca de cem pessoas.
¿ Foi muito doloroso. Nós íamos atrás do carro fúnebre, carregando fotos e gritando frases como ¿Zapata vive em nossos corações¿ ¿ contou a bibliotecária Marta Días, de Banes.
Os dissidentes esperam poder usar a morte de Zapata para unir a fragmentada oposição cubana contra o regime e para chamar a atenção do mundo para a situação dos direitos humanos no país. Segundo Martha Beatriz Roque, uma economista que foi presa na onda de repressão de 2003 e solta por problemas de saúde, ¿haverá um antes de depois do assassinato de Zapata Tamayo¿.
Mas para parte de Cuba, a morte de Zapata sequer ocorreu. A notícia foi ignorada pela imprensa cubana. Os sites dos jornais do Partido Comunista, ¿Granma¿ e ¿Juventud Rebelde¿ dedicaram as manchetes ao encontro entre os irmãos Castro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Ministério das Relações Exteriores divulgou uma nota oficial lamentando o falecimento do dissidente, a contragosto, segundo analistas, apenas devido à presença de Lula e dos repórteres brasileiros.
Também para a imprensa era difícil o acesso a Banes. O governo advertiu os correspondentes estrangeiros a não viajarem para o enterro sob ameaça de não terem o visto renovado.
Quem não tinha documentos comprovando o motivo da viagem era obrigado a retornar. Não foram permitidas imagens do enterro. As poucas rádios que transmitiram a notícia eram estrangeiras, captadas em território cubano.
Acredita-se que somente após alguns dias ou mesmo semanas a população vá saber da morte através do que os cubanos chamam de ¿Rádio Bemba¿, a informação boca-a-boca.
A movimentação da polícia também era grande em Havana, em locais onde poderiam organizar manifestações.
Mesmo assim, em Guanabacoa, umas 15 pessoas organizaram quatro dias de luto, usando braçadeiras negras.
Vladimiro Alejo chegou a pintar a própria casa de preto, em protesto.
A Igreja Católica considerou ¿uma tragédia para todos¿ a morte de Zapata e pediu ao governo que crie condições de diálogo para evitar que se repitam situações como essa, segundo uma nota. Já o presidente do governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, que tradicionalmente tem um discurso conciliador em relação a Cuba, elevou o tom ontem e exigiu que o país liberte todos os presos políticos.
¿ Devemos exigir ao regime cubano que devolva a liberdade aos presos de consciência e respeite os direitos humanos ¿ disse numa reunião com parlamentares da União Europeia.
Zapata tinha 42 anos e era operário e bombeiro hidráulico. Ele foi preso em 2003, durante a onda repressiva conhecida como Primavera Negra.
Sentenciado a três anos por desacato e desordem pública, viu a sentença crescer para 36 anos na prisão. Era considerado pela Anistia Internacional um prisioneiro de consciência ¿ os presos políticos que não usam violência.
Segundo sua família, ele foi espancado várias vezes por protestar contra as condições na prisão.