Título: Chile contém saques e busca vítimas
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 01/03/2010, O Mundo, p. 26

Número de mortos sobe para 708. Ondas gigantes devastam a costa, e governo decreta toque de recolher em zona mais afetada

Os efeitos da devastação do terremoto de 8,8 de magnitude - o sexto mais intenso já registrado na História - que atingiu o Chile na madrugada de sábado começaram a ser mais bem avaliados ontem. Depois de sobrevoar de helicóptero as regiões de Bío Bío e Maule, cerca de 300 quilômetros ao sul de Santiago e as mais afetadas pela tragédia, a presidente Michelle Bachelet declarou que o número de mortos em todo o país subiu para pelo menos 708. E provavelmente vai aumentar, já que, segundo dados extraoficiais, pelo menos 400 pessoas ainda estariam desaparecidas. Além do tremor, as regiões costeiras do centro-sul do Chile sofreram os impactos de ondas de até 10 metros de altura em decorrência do sismo. A maioria das mortes (quase 600) ocorreu em Maule, cuja maior cidade é Constitución, e em Bío Bío, onde fica Concepcíon, a segunda maior cidade do Chile e a mais próxima ao epicentro do terremoto ocorrido no mar, a 35 quilômetros de profundidade. Casas e estabelecimentos comerciais em Concepción ainda foram palco de saques por pessoas desesperadas por água e comida, manifestações logo repreendidas pela polícia.

Pela manhã, cerca de 150 pessoas usaram até pequenas retroescavadeiras para abrir a porta de ferro de um mercado no centro da cidade. Assim que entraram, alguns invadiram a seção de eletrônicos e eletrodomésticos. A polícia reagiu usando bombas de gás lacrimogêneo e jatos de água para dispersar os manifestantes.

- É para meu filho. Não temos onde comprar, a cidade está toda fechada - dizia um senhor, equilibrando pilhas de latas nos braços.

Enquanto isso, redes de TV mostravam casas sendo destruídas pelas águas, carros entrando em edifícios e barcos indo parar nas ruas de Concepción e outras cidades como Pelluhue e Constitución.

Supermercados fornecem comida de graça

Horas depois, num acordo do governo com a representante da associação dos supermercados de Bío Bío e Maule, a polícia autorizou a entrada apenas de mulheres, que saíam carregadas de alimentos e fraldas descartáveis. Bachelet afirmou que os supermercados continuarão distribuindo comidas e itens de necessidade básica gratuitamente para a população afetada. Os Ministérios do Interior e da Defesa decretaram estado de catástrofe nas regiões - o que permite, entre outras medidas, o envio das Forças Armadas para as ruas. O governo decretou toque de recolher nesses locais a partir das 21h.

- Vivemos uma emergência sem comparação na História do Chile - disse Bachelet.

Além da contenção dos saques, as autoridades se concentram no resgate das vítimas. Em Concepción, principal cidade da região de Bío Bío, pelo menos 100 homens, mulheres e crianças ainda estariam presas nos escombros de um prédio que desabou.

- As horas e o tempo são o fator crítico para salvar as pessoas que estão aqui dentro - disse a prefeita da cidade, Jacqueline van Rysselberge, que, em seguida, criticou o governo chileno pela demora no envio de equipes de socorro. - É uma vergonha que não tenham conseguido chegar ontem (sábado).

Os estragos das tsunamis que atingiram a costa centro-sul do Chile, com ondas gigantes entrando pela cidade de Talcahuano, próxima a Concepción, ainda não foram completamente avaliados. Carmen Fernández, diretora do Bureau Nacional de Emergências, disse que não tinha como informar o número de vítimas.

A Cruz Vermelha chilena afirmou que mais de dois milhões de pessoas foram afetadas pelo tremor. Ainda foram registradas mais de 120 réplicas, com tremores que variaram de 4,9 a 6,9 graus em magnitude, levando apreensão e pânico à população de várias cidades.

É trabalhoso chegar a Concepción. Segundo a polícia rodoviária, a viagem, que antes se fazia em seis horas de carro, está durando até 12 horas. Além de haver rachaduras nas estradas, só é permitida a passagem de veículos pequenos. A Ponte Velha, principal porta de entrada e saída do município, também veio abaixo. Ontem, centenas de pessoas se aglomeravam no terminal rodoviário de Santiago à espera da abertura das rodovias, o que só deve acontecer hoje.

Os primeiros voos comerciais operados pela LAN começaram a aterrissar ontem no aeroporto de Santiago, após ele ter ficado fechado. O aeroporto, no entanto, foi novamente fechado à tarde devido a novos tremores e danos no edifício do terminal. Espera-se que a situação esteja mais normalizada hoje. O principal porto do país, em Valparaíso, continua fechado. Mas a produção de cobre, o principal produto de exportação do Chile, foi retomada pela empresa Anglo-American na mina de Los Bronces.

Na capital chilena, transformou-se num exercício de paciência obter sinal para uso de internet e telefone celular. Em alguns pontos que comercializam esse tipo de serviço, as filas se estendem pelas ruas. Ontem, pequenos tremores voltaram a assustar moradores e turistas. Na região do centro histórico, uma das mais atingidas pela tragédia, hóspedes de grandes hotéis permaneciam no lobby, temendo voltar para os quartos. Milhares de moradores de Santiago decidiram não dormir em casa enquanto o governo não confirmar o fim das réplicas de tremores. Na Praça de Armas, a mais famosa da cidade, cerca de 100 pessoas dormiam ao relento na madrugada de ontem.

Uma das cenas que não saem da cabeça dos moradores é a de parte do anel viário que cerca Santiago totalmente destruída. Durante o terremoto, as vigas de sustentação cederam e uma parte da estrutura foi ao chão. Sem energia elétrica, restabelecida apenas seis horas depois dos tremores, os carros que seguiam naquele sentido acabaram caindo de uma altura de oito metros. O Palácio de Belas-Artes, um dos principais conjuntos arquitetônicos, também foi danificado: sua torre principal caiu. Mas o maior reflexo do terremoto nas construções de Santiago é possível observar em detalhes: pequenas frestas foram abertas entre um prédio e outro. Pedaços de cimento também estão espalhados por calçadas, num sinal de que muitas estruturas foram abaladas pelo sismo.

- O país está paralisado. É uma falsa sensação de normalidade, mas não é possível sequer definir qualquer situação a médio prazo - avaliou o empresário Fernando Quedera.

O embaixador do Brasil no Chile, Mário Vilava, disse que as autoridades trabalhavam para tentar confirmar a informação de que pelo menos um brasileiro estaria desaparecido. Ele estaria em Concepción, mas não havia, até ontem à noite, confirmação.

A presidente Michelle Bachelet contou que muita ajuda internacional foi oferecida, e que vai aceitá-la segundo as necessidades. A secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, vai visitar o Chile amanhã como parte de uma turnê iniciada ontem pelas Américas Central e do Sul, que a levará também ao Brasil.

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