Título: Toyota, entre os erros de gestão e o orgulho ferido
Autor: Sarmento, Claudia
Fonte: O Globo, 28/02/2010, Economia, p. 33

Para conquistar a liderança no mundo, empresa abriu mão de rígidos controles

TÓQUIO. A boa fama dos carros fabricados no país sempre rendeu aos japoneses uma dose de autoestima. E ela só aumentou quando a Toyota passou a americana General Motors, conquistando o título de maior montadora do mundo. O gigantesco recall, que já afetou 8,5 milhões de veículos e levou o presidente da empresa a ser sabatinado no Congresso americano, foi não apenas um golpe violento para a Toyota, mas um tapa na cara do orgulho japonês. Os freios descontrolados e a aceleração súbita, que provocaram os problemas da maior empresa do Japão em volume de vendas, desencadearam também questionamentos sobre um modelo de administração considerado até então exemplar.

Analistas ouvidos pelo GLOBO concordam no que diz respeito aos principais erros cometidos pela Toyota ¿ que sempre foi apontada como um ícone do que existia de melhor no Japão, por sua capacidade de inovação tecnológica e eficiência administrativa. São erros que vão além de pedais defeituosos e que podem ter provocado a morte de 34 pessoas nos EUA. Com 70 anos de história, a montadora, muitas vezes comparada ao Monte Fuji ¿ um símbolo nacional ¿, construiu sua fama em cima do tripé qualidade, confiança e segurança. Os três fatores foram agora esmagados pelas reclamações e lágrimas dos consumidores, principalmente os americanos.

Além de ter demorado demais para reagir ¿ um verdadeiro desastre de comunicação interna e relações públicas ¿ ficou claro que a empresa deixou de lado rígidos padrões de qualidade, conhecidos como ¿Toyota way¿, para tornar-se a líder mundial do mercado.

¿ A Toyota cresceu demais na última década, adicionando a cada ano meio milhão de unidades em suas vendas globais. Essa expansão acelerada trouxe escassez de mão de obra, entre engenheiros e técnicos da área de manutenção e do controle de qualidade. A linha de frente foi excessivamente estendida ¿ diz Koji Endo, especialista no mercado automotivo da Advisory Research Japan, empresa de análise de investimentos.

Processo de decisão é lento e leva em conta o grupo

A Toyota tem mais de 50 fábricas fora do Japão, mas sua cultura empresarial é tipicamente japonesa. As decisões são cuidadosamente analisadas e o consenso é buscado a todo custo. Mas o processo é lento.

¿ Na gestão japonesa, o grupo é mais importante que um indivíduo. Um ponto positivo é que todos seguem as regras e executam os processos detalhadamente. Mas isso é um problema numa crise, pois não há um líder forte capaz de tomar decisões rápidas e exigir mudanças drásticas ¿ explica Parissa Haghirian, professora de administração internacional da Universidade de Sophia, em Tóquio.

As reclamações em relação à aceleração descontrolada eram antigas, mas a burocracia prejudicou a comunicação. Outra filosofia do ¿Toyota way¿ ¿ informações, principalmente as más notícias, são passadas de baixo para cima ¿ também falhou. Akio Toyoda, presidente da empresa, neto do fundador e conhecido no Japão como ¿o príncipe¿, admitiu que determinados alertas não chegaram ao topo.

¿ As reclamações chegam a Washington, onde ficam os executivos que cuidam das relações com o governo, e são repassadas a Tóquio, mas não ao departamento de vendas, na Califórnia, nem ao de produção, em Indiana, nem ao de engenharia, em Michigan. Akio Toyoda já havia afirmado no ano passado que era necessário unificar as gerências nos EUA para que tivessem mais autoridade ¿ diz Michael Smitka, diretor do Departamento de Estudos Asiáticos da Universidade de Washington and Lee.

Vendas nos EUA caíram 16% desde janeiro

Embora ninguém negue a gravidade da situação, é comum a afirmação entre consumidores japoneses de que o caso estaria sendo aumentado por parlamentares americanos para favorecer a General Motors. Parissa Haghirian não entra na discussão política, mas acha que existe exagero sempre que se fala de Japão no Ocidente. Para ela, embora a Toyota tenha cometido erros fatais, parece haver um certo prazer mórbido em assistir ao fracasso da maior montadora do mundo, cujas vendas já caíram 16% em janeiro nos Estados Unidos, seu principal mercado.

¿ As análises sobre Japão são sempre muito radicais. Quando se fala no envelhecimento da população, afirma-se que o Japão está morrendo. E a Europa? Agora, por causa da Toyota, afirma-se que todas as empresas japonesas estão ultrapassadas e serão engolidas pela China. Não dá para comparar os produtos dos dois países. O Japão é desenvolvido há 50 anos. A China está começando a aprender ¿ contesta a professora, autora de uma série de livros sobre corporações japonesas.

Toyoda pareceu menos frio no Congresso americano, na última quarta, e arrancou aplausos de jornais como o ¿Wall Street Journal¿. Mas o analista Tatsuyo Misuno, diretor da Mizuno Credit Advisory, teme que não apenas o logo em forma de coroa da montadora saia amassado da crise, que vai custar US$2 bilhões em reparos.

¿ As montadoras japonesas vinham inovando e fortalecendo sua imagem com os híbridos, menos poluentes. O recall de mais de 400 mil Prius, recordista de vendas no Japão, aumenta a desconfiança em relação a esse segmento ¿ afirma o analista japonês.

Um misto de ignorância e desprezo pelo Ocidente

O jornalista Kevin Rafferty, autor do livro ¿Inside Japan¿s Powerhouses¿, um estudo sobre as corporações japonesas, lembra que a busca por operações enxutas levou o Japão a investir mais em trabalhadores temporários, diminuindo a média salarial e, consequentemente, provocando incerteza e deflação.

¿ O Japão também é prejudicado por sua inflexibilidade e incapacidade de entender o resto do mundo, o que oscila entre a ignorância e o desprezo, como se viu no fracasso da Toyota. É irônico que o país dependa tanto de exportações ¿ sentencia.