Título: Saques, prisões e fogo intencional
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 02/03/2010, O Mundo, p. 24

Caos se espalha; Bachelet manda tanques e amplia toque de recolher nas áreas atingidas

Enviado especial

CONCEPCIÓN, Chile

Ao mesmo tempo em que soldados do Exército chileno ainda buscam vítimas sob os escombros, os moradores de Concepción, cidade a 520 quilômetros ao sul de Santiago, e uma das mais atingidas pelo terremoto, sofriam com o clima de terra arrasada agravado pela falta de luz, água e comida há três dias.

Desde a madrugada de sábado, quando o abalo de 8,8 graus devastou parte do município, uma onda de desespero tomou os 600 mil habitantes que vivem ali. Um homem de 22 anos morreu a tiros ao tentar proteger sua casa de um saque na localidade vizinha de Chiguayante.

Diante do caos, o Exército chegou à medida extrema de ocupar Concepción com tanques e ampliar o toque de recolher para entre 20h e meio-dia. O toque de recolher foi estendido ainda para Talca, Cauquenes e Constitución, entre meia-noite e 6h.

¿ Eu quero fazer um chamado à consciência das pessoas, não é aceitável pilhagem e delinquência ¿ afirmou Bachelet após anunciar uma série de medidas para as regiões de Maule e Bío Bío, as duas mais afetadas.

Uma delas foi o envio de sete mil militares a Concepción e arredores.

Mas enquanto o socorro não chegava, moradores reclamavam.

¿ O descaso com que estão nos tratando parece um incentivo para que roubemos ¿ protestou Eugenia Vissana, cujo filho está desaparecido.

Foram presas pelo menos 55 pessoas na cidade por saques e desordem, e 170 em todo o país. Soldados jogavam bombas de gás lacrimogêneo e jovens revidavam com pedras e paus. O confronto acontecia em meio a pequenos tremores. Foram seis ontem e o governo avalia que pelo menos 70% das edificações de Concepción estão comprometidas.

Num posto de gasolina, saqueadores usaram bambus e mangueiras de plástico para sugar gasolina do reservatório de noite. De manhã, havia filas de mais de dois quilômetros para abastecer. Nos únicos dois supermercados que resistiram aos ataques, filas chegam a agrupar mais de 500 pessoas. O atendimento era feito a portas fechadas, entrando um de cada vez, e escolta do Exército.

Moradores montam barricadas contra saqu

Na principal rua da cidade, Carreras, cerca de 300 pessoas paravam os carros e extorquiam motoristas, impedindo a passagem de quem não pagasse. Na mesma rua, manifestantes puseram fogo num supermercado, gerando um incêndio de grandes proporções. Sem opções, até mães que antes estavam inibidas com os saques aderiram aos roubos como forma de sobrevivência.

¿ No princípio tivemos um pouco de vergonha, mas depois pensamos que o importante era cuidar da gente.

Na minha casa precisamos de comida para 20 pessoas ¿ explicou à mídia local, desesperada, María Machuca, ao sair do supermercado Líder, logo depois incendiado.

Nas principais entradas dos bairros, moradores se revezam em grupos por 14 horas com barricadas feitas com pneus, armados com paus e espingardas, para evitar saques nas residências.

Pessoas perambulam pela cidade aparentemente sem destino. São centenas de homens e mulheres com mochilas nas costas pedindo carona. Alegando medo da polícia, alguns moradores procuram jornalistas estrangeiros para denunciar estupros.

Estacionamentos se transformaram em grandes acampamentos, com até três ou quatro famílias ocupando uma mesma barraca.

Com um sentimento de desamparo, o professor de espanhol Eduardo Aundez reclamava da lentidão da reação do governo e olhava ontem com desgosto para um soldado que esperava pacientemente saqueadores se aproximarem de uma loja, para depois lançar gás lacrimogêneo neles.

Apenas carros pequenos conseguiam trafegar pelas rodovias da região. Ônibus e caminhões foram proibidos de circular. Soldados apontavam fuzis para quem se arriscava a andar de carro à noite pelas ruas da cidade. Na abordagem, pediam documentos e exigiam a saída imediata do município.

Numa tragédia dentro de outra, um avião com seis pessoas a bordo que se dirigia à cidade para ajudar os moradores caiu, deixando seis mortos. A contagem era de 48 desaparecidos nos escombros de Concepción, oito mortes e 63 pessoas que conseguiram escapar com vida.

¿ Ouvimos o murmúrio de três mulheres, por isso estamos concentrando esforços porque ainda deve ter muita gente com vida ¿ disse um dos soldados que trabalhava no resgate.

A previsão é de que as buscas durem pelo menos mais uma semana. Toneladas de lixo também estão espalhadas por toda a cidade, da periferia até a região central do município. O trabalho de controle do tráfego está sendo feito provisoriamente também por soldados do Exército.

Com o aeroporto ainda interditado, e sem previsão para retomar as operações, o acesso à região mais atingida também é complicado. São pelo menos cinco desvios, o que faz com que a viagem normalmente de seis horas dure até 12. Parte das rodovias foi destruída, e enormes rachaduras surgiram ao longo de todo o trecho.

A falta de energia elétrica atingiu cidades distantes até 300 quilômetros da costa chilena mais próxima do epicentro do terremoto.

O Ministério da Saúde chileno não descartou a possibilidade de uma emergência sanitária. Oito hospitais de campanha foram instalados para atender feridos das áreas mais atingidas. No resto do país, algumas cidades começavam ontem a voltar à rotina normal. Escolas de quatro regiões no norte do país planejavam retomar hoje as aulas.