Título: O amador
Autor: Leitão, Miriam
Fonte: O Globo, 02/03/2010, Economia, p. 20

É ainda março e tanto já aconteceu. Terremotos devastadores, tempestades. Mortes. O Brasil perdeu símbolos, mas são perdas que frutificaram o terreno para colheitas futuras. É ainda março, mas o ano já vai longe com suas dores e exemplos fortes. Mindlin, que choramos agora, fez o que poucos fazem no Brasil: doou ao público um patrimônio.

Quando estivermos andando pela Biblioteca Brasiliana da USP, em São Paulo, José Mindlin estará lá. Quando estudantes estiverem consultando textos, relatos de viagens, obras raras, documentos de um Brasil antigo, livros de estudo, Mindlin estará lá. Ele vai rir em alguma estante, por algum instante, quando o livro capturar alguém, e ele pensará: ¿ Ah! mais uma pessoa que pegou o vírus daquela doença incurável: o prazer de ler.

Doença que ele confessava ter e querer espalhar pelo Brasil. E quanto mais os vírus que ele deixou por aí se espalharem mais chances teremos.

Mindlin estará nas nossas lembranças, junto com livros, cultura, obras raras, autores inesquecíveis. Zilda Arns estará nas crianças que salvou, no caminho que ensinou o país a fazer para proteger a vida inicial, quando ela é frágil demais para os tantos perigos criados pelo nosso descuido.

Os símbolos que perdemos neste ano, em que março mal começou, eram do tipo que dão frutos.

Mindlin salvou obras do esquecimento, correu mundo atrás de nossas preciosidades desgarradas, gastou dinheiro com livros, mas não pelo prazer da propriedade.

Ele era um amador.

¿Amador de livros e de leitura¿, escreveu Antonio Candido. Mindlin se deliciava contando a história do encontro com cada exemplar.

É famosa sua história, com várias idas e vindas, de como ele conseguiu a primeira edição de ¿O Guarany¿, de José de Alencar. Perseguiu o livro por 17 anos e acabou conseguindo. A história foi contada ontem no Segundo Caderno.

Ele exibia orgulhoso preciosidades da sua biblioteca, como a primeira prova tipográfica que viera da gráfica, em que Graciliano, de próprio punho, riscou o título pensado originalmente ¿O mundo coberto de penas¿ e escreveu o definitivo: ¿Vidas Secas¿. Quem admira o estilo enxuto e exato de Graciliano sabe que o livro só podia mesmo ser ¿Vidas Secas¿. O exemplar corrigido de ¿Grande Sertão: Veredas¿ mostra cada minúcia, cada dúvida, cada corte; mostra parágrafos unidos e desunidos pelas mãos de Guimarães Rosa. É delicioso constatar que no livro, com o qual nos encantou, Guimarães Rosa trabalhou com o cuidado de um ourives.

Penso nos que se apaixonarem no futuro pelo ¿Grande Sertão¿ e puderem consultar, em computadores, digitalizadas, as páginas que foram salvas por Mindlin, para que os brasileiros se entendessem melhor.

Penso nos que olharão por dentro das nossas obras-primas, lerão os relatos dos viajantes que chegaram aqui séculos atrás. Penso no privilégio que devemos a ele, o guardador de livros.

Será que chegamos ao tempo do livro eletrônico? À era da linguagem cifrada das redes sociais? Sim, chegamos.

E isso é o fim do livro? Isso ameaça o tempo da colheita dos frutos semeados pelo gigante do livro, José Mindlin? Não ameaça. O mundo vai avançando e encontrando novas formas de exibir a linguagem. O livro é uma solução magnífica que tem 500 anos. Mas é a leitura que importa, o prazer da leitura é que deve ser ensinado às crianças no tempo do livro impresso ou do texto digital. O templo não são as paredes do edifício, mas o espírito que ali habita. Assim eram os livros para José Mindlin.

Assim são os livros. Eles permanecerão se tiverem guardiões.

No meu blog, contei, no domingo, a história da conversa que tive com ele e Guita, em 2005, numa tarde deliciosa que passei com os dois. Em que li para eles poemas de Drummond. Repito aqui a história para quem gosta mais do texto impresso no jornal. Guita me contou que uma grande enchente aconteceu em São Paulo e ela teve medo de a casa ser inundada. E teve uma única preocupação: que livro ela salvaria? Que livro, entre 40 mil? perguntei. E ela me mostrou os sonetos de Petrarca. Para que eu entendesse a escolha, Mindlin me contou que o livro fora censurado pela Inquisição. Uma tinta fora passada pelos censores para apagar alguns dos sonetos. Mas o tempo apagou a tinta, e tudo o que foi suprimido reapareceu. O livro era a obra, mas era também a prova da resistência da palavra.

A tendência será dizer que ficamos mais pobres sem ele. Mas José Mindlin, filho de russos, nascido em São Paulo, iniciou sua biblioteca aos 13 anos, viveu a vida inteira para os livros, e doou parte desse acervo ao povo brasileiro.

No meio do caminho, fez várias coisas. Foi jornalista, porque terminou o ensino médio cedo demais para entrar na faculdade. Foi advogado, por profissão. Foi empresário, por acaso. Um dia, de um tempo doido, foi secretário da Cultura de São Paulo e escolheu, pelo excelente currículo, o jornalista Vladimir Herzog para chefe de jornalismo da TV Cultura. De lá saiu depois do assassinato de Herzog.

Mindlin foi muito e fez muito. Espalhou tanto bem que é impreciso dizer que somos mais pobres sem ele.

Ficamos mais ricos, por ele.