Título: Consternação e desamparo
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 03/03/2010, O Mundo, p. 27

Sobreviventes buscam corpos de entes em Constitución; tsunami deixou 300 desaparecidos

A CHILENA Salome Tobita (no alto) se desespera ao encontrar o corpo de seu filho; acima, Tania Gonzalez e o marido pedem ajuda para encontrar o filho de 5 anos: mãe conseguiu segurá-lo nas duas primeiras ondas, mas o perdeu na terceira

Com o porta-retrato do filho na mão, Tania González andava de um lado para outro mostrando a foto do garoto, ao lado de um papai noel, a jornalistas estrangeiros, no centro de Constitución. Desesperada, rosto e braços marcados por arranhões profundos, ela parecia perder a lucidez enquanto lembrava que não tivera forças para continuar agarrada a Daniel, de 5 anos, quando a terceira grande onda invadiu a ilha de Orrego, onde sua família comemoraria o aniversário do menino nesse último fim de semana. No mesmo local, centenas de turistas dormiam no momento do terremoto que desvastou parte do Chile. Pelo menos 300 pessoas continuam desaparecidas, segundo a polícia local, entre elas o pequeno Daniel.

¿ Consegui segurá-lo pela barriga nas duas primeiras ondas, até debaixo d¿água, mas perdi os sentidos e, quando acordei, estava deitada perto de umas pedras e sem meu filho ¿ conta ela, aos prantos, ao mesmo tempo em que acompanha soldados do resgate colocando um novo nome na lista de corpos identificados, numa placa branca, em frente ao ginásio da cidade.

Sem o filho único, ela se agarra a imagens desconcertantes para acreditar que Daniel está vivo. Assim que chega ao local um caminhão trazendo cerca de 20 caixões, ela diz ao GLOBO:

¿ Nenhum deles é para criança, tenho certeza que meu menino vai aparecer ¿ diz, amparada pelo marido, Ivan Parreo.

Havia na lista oficial de mortos pelo menos 16 crianças, entre os 73 corpos já identificados em Constitución. Até agora, são mais de 350 vítimas apenas em cidades da costa chilena após o terremoto que atingiu o país na madrugada de sábado. Mas o número pode chegar a mil, acreditam fontes do governo. Em todo o país, oficialmente, o número de vítimas fatais até ontem à noite era de 795.

Ginásio serve de abrigo e necrotério

Na pequena ilha de Orego, praticamente colada ao continente, a informação é de que algumas pessoas só sobreviveram porque subiram em árvores no instante em que a água invadiu. De Constitución, a imagem é de uma ilha deserta. Tania e seu marido ainda enfrentam outro problema. A casa onde moram fica às margens do Rio Maule, que subiu cerca de quatro metros e arrasou cinco quarteirões. A madrinha do filho deles é quem deu abrigo ao casal.

De cada lado, a ilha é banhada pelo rio e pelo mar. Após o tremor, foi uma das primeiras localidades a serem atingidas pela tsunami. Ondas de até dez metros chegaram à ilha pelo rio e varreram todas as edificações. Equipes de resgate se encontram naquela região.

O clima é de consternação entre os 43 mil habitantes de Constitución. Ontem, lado a lado, 15 corpos aguardavam pelo trabalho de identificação, dentro do próprio ginásio, que também tem servido de abrigo para moradores que perderam suas casas. O silêncio só é quebrado pelo grito desesperado de familiares. Alguns buscam notícias de parentes desaparecidos ao mesmo tempo em que aguardam numa enorme fila a chegada de caminhões com água.

¿ Estamos com dificuldade até para o trabalho de resfriamento dos corpos ¿ explicou o capitão Carlos Moralez.

A prefeitura local havia conseguido até ontem à tarde apenas um gerador. Funcionários e parentes usam máscaras cirúrgicas na região central da cidade para atenuar o cheiro de cadáver, que a cada dia fica mais forte.

Assim como em boa parte das cidades litorâneas do país, também falta comida e energia elétrica em Constitución. Um único posto de saúde com apenas um único médico tenta dar conta das dezenas de pessoas que se aglomeram entre os escombros das casas vizinhas. Com fome, os moradores buscam ajuda com a polícia e a imprensa.

¿ Meu neto está morrendo de fome e sede, tem como nos ajudar? ¿ pedia Madalena Antonio, 64 anos, quase última na fila da água. Aposentada, ela ajuda a sustentar o neto, de 12 anos, que ontem ajudava a limpar casas e lojas em troca de pesos chilenos.

O terminal de ônibus da cidade se misturou com o setor pesqueiro do município, tamanho o número de barcos que foram parar nas plataformas de embarque. A igreja de São José, no centro do município, está prestes a desmoronar. Os militares tentam coordenar o trânsito de veículos e pessoas pelas ruas. A devastação foi tão grande que são poucos os moradores que voltam para casa para recuperar algum objeto ou documento. Quase todas as casas da área mais atingida foram abandonadas, e cabe também aos soldados a segurança patrimonial.

O trânsito entre as regiões sul e norte do país continua complicado. Novas rachaduras surgiram na pista, e a polícia é obrigada a improvisar desvios em meio ao trânsito carregado.

oglo bo.com.br/mundo