Título: No balneário de Dichato, um teste de solidariedade
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 04/03/2010, O Mundo, p. 33
Sem registro de saques, demora na ajuda fez moradores do vilarejo devastado dividirem o que tinham
IMAGENS AÉREAS mostram a destruição em massa do vilarejo de Dichato, onde testemunhas contam que ondas chegaram a 10 metros
SEM ACESSO à cidade, militares e bombeiros entregam carregamentos de ajuda humanitária de helicóptero
DICHATO. Sentada na cama da casa em que a água e a lama alcançaram meio metro de altura, Palmira Gómez Tapias recolhia cobertores e lençóis quando um pequeno tremor atingiu ontem a região de Dichato, o vilarejo no sul do Chile mais destruído pelo terremoto e pelas ondas gigantes que varreram casas, barcos, postes e o que mais aparecia pela frente, no último sábado. Resignada, diante do indisfarçável susto da reportagem do GLOBO, Palmira fechou os olhos por instantes e rezou. Em seguida, levantou-se, olhou pela janela e suspirou:
¿ Aqui não dá para ficar pior ¿ disse, tentando salvar o que era possível da pequena casa de dois cômodos onde morava sozinha. ¿ Meu pai tem uma casa abandonada no campo, creio que é mais seguro ficar lá até ter uma ideia de como vou refazer minha vida.
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O novo tremor nas cidades de Tomé e Dichato foi reflexo de réplicas concentradas ontem em Concepción, uma de 5,9 e outra de 6 graus na escala Richter. Os municípios estão entre os mais devastados pelo maremoto. O abalo de ontem, porém, não afetou a rotina na combalida região, onde os cerca de quatro mil habitantes foram surpreendidos cinco dias atrás pelo terremoto seguido por tsunamis. A estimativa é de que 90% das edificações de Dichato foram seriamente comprometidas. Os moradores montaram barracas no alto de um morro.
Palmira dormia naquela noite quando a cama começou a se mover. Pensou, primeiro, que se tratava de um dos pequenos tremores que normalmente atingem a região. Mas, resolveu pular a janela quando percebeu que uma enorme rachadura rasgava a parede do quarto, do teto ao chão. Já sob os escombros, o mar invadiu a cidade, horas depois.
¿ Subi no muro enquanto via a água arrastando cachorros e móveis. Foi a mais assustadora cena que já assisti ¿ disse ela, que ontem mesmo deixaria a cidade, levando algumas roupas, documentos e o pequeno grill que comprou dois dias antes da tragédia.
A dificuldade de acesso a Dichato fez com que o governo tivesse dificuldade para enviar mantimentos. O primeiro helicóptero com comida, farinha, água e leite pousou no município apenas na terça-feira. Em fila, os moradores, alguns ajoelhados, teriam aplaudido a chegada dos militares, que ontem continuavam com a distribuição. Um navio da Marinha chilena estava ancorado pela manhã a cerca de dois quilômetros da costa.
¿ Não dá para priorizar seja quem for. Todos estão numa situação lamentável ¿ afirmou um dos soldados que trabalharia no carregamento das caixas de mantimentos.
Pela contagem oficial, 11 pessoas morreram e 47 estão desaparecidas em Dichato. Sem casa, filho único e órfão de mãe desde os 9 anos, o pescador Edison Dunnes passa boa parte do tempo olhando para o mar. O pai dele, também pescador, dormia num barco pesqueiro quando as ondas que chegaram a dez metros de altura provocaram o rastro de destruição.
¿ Sei que meu pai caiu do barco quando as ondas chegaram. Minha esperança é encontrá-lo vivo ou, pelo menos, poder olhar para o corpo dele. Nem que seja pela última vez ¿ contou o rapaz, de voz embargada, enquanto consolava vizinhos acampados nas margens de uma pequena estrada.
Revirados, os barcos pesqueiros foram parar a 200 metros da praia. Um deles se misturava a equipamentos de um parque de diversões, até então instalado de frente para o mar. Conhecido como um discreto balneário, Dichato recebe cerca de 200 mil pessoas no verão. No entanto, a maioria dos desaparecidos, acredita a polícia, deve ser mesmo de moradores, principalmente dos que vivem próximo à praia.
Por três dias, Dichato ficou completamente isolada. Até terça-feira, ninguém chegava ou saía da cidade, o que aumentou o clima de desespero das pessoas. Aos prantos, uma senhora dizia que só depois da chegada de ajuda humanitária conseguiu colocar leite na mamadeira da neta, de 6 meses. A mãe da criança estava em Santiago e só conseguiu chegar ontem à cidade.
Para chegar à região de Dichato, a reportagem do GLOBO teve de percorrer 10 quilômetros a pé, saindo do município de Tomé, até que conseguiu carona num veículo 4 x 4 com uma moradora. Em pouco mais de uma hora naquela área, a impressão era de que o mar calmo não provocaria novos problemas.
Ao contrário das maiores cidades da costa chilena, como Concepción e Constitución, a polícia não registrou em Dichato tentativas de saque. Por lá, os moradores estavam dividindo o que tinham na dispensa até a chegada de água e comida. Ao ser informado de que uma equipe do Brasil estava na região, um homem cobrou a promessa de ajuda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
¿ O Brasil é um país irmão e espero que seu presidente ajude o povo chileno. Não é hora para diferenças políticas. É hora de ajudar ¿ disse o homem, preferindo não se identificar.
oglobo.com.br/mundo