Título: A última chance de Ezequiel
Autor: Otávio, Chico
Fonte: O Globo, 09/03/2010, O País, p. 12
Um perfil exclusivo do coautor do hediondo assassinato do menino João Hélio, que, agora, aos 18 anos, se beneficia de regime semiaberto
Ninguém sabe ao certo o que fazer com Ezequiel. Nem a produtora Vera de Paula, mulher do cineasta Zelito Viana, que transformou o rap composto pelo jovem no fio condutor de seu mais recente curta-metragem, todo ele filmado nas unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase).
Agora, Vera não quer mais exibir o filme. Prefere não falar sobre ele, muito menos de seu principal personagem.
Aonde vai, ninguém quer Ezequiel.
Nos últimos dias, um movimento encabeçado pelo prefeito da cidade que o abriga, no interior do estado, clamava pelo seu banimento.
Nas escolas do lugar, causa arrepio a ideia tê-lo entre os alunos, ainda que Ezequiel seja apontado pelo Degase como um estudante de bom desempenho.
De perto, Ezequiel causa desconforto. Ele é alto e forte. Dois agentes o espreitam, sem desgrudar os olhos. A fisionomia é dura, sem sorrisos. Sua máxima descontração é o rosto oferecido ao beijo materno. No antebraço esquerdo, exibe uma tatuagem malfeita, típica da população carcerária, da palavra mãe, em maiúsculas e com aspas duplas.
Nas unidades onde esteve, o rapaz foi sinônimo de repulsa. Passou boa parte dos três anos de apreensão (como o Estatuto da Criança e do Adolescente chama a prisão de jovens em conflito com a lei) isolado dos demais, na ¿tranca¿, conforme se diz nas unidades.
Punição? Garantem os gestores da carceragem que não. O isolamento era, dizem, uma forma de proteger sua vida, principalmente quando o noticiário de TV relembrava o caso. No turbilhão que marcou a sua trajetória nos últimos dias, Ezequiel ganhou uma alcunha entre agentes públicos que tiveram contato com ele: ¿lixo atômico¿.
Poluente, asqueroso, perigoso, letal, repulsivo...
É preciso dar um destino seguro a ele, clama-se. Livrar a sociedade deste risco chamado Ezequiel Toledo da Silva, 18 anos, no xadrez desde os 16, por um crime hediondo. Ele integrava, a 7 de fevereiro de 2007, a quadrilha que arrastou por sete quilômetros, preso a um cinto de segurança do lado de fora do carro, o menino João Hélio Fernandes Vieites, de 6, cujo corpo ficou irreconhecível.
Na época, uma testemunha contou que os ladrões fizeram troça do horror: ¿O que estava sendo arrastado não era uma criança. Era um boneco de Judas¿, teriam dito, antes de seguir com o carro.
Enquanto quatro dos cinco acusados pelo crime, já maiores na época, cumprem pena de 39 a 45 anos, Ezequiel foi beneficiado com progressão por ser menor, e agora cumpre regime semiaberto. De acordo com autoridades, mesmo atrás das grades ele manteve um comportamento violento e incontrolável, marcado por brigas e tentativas de fugas.
Para quem aposta na tese do menino cruel, incorrigível, as situações que o envolveram nas unidades do Degase autorizam a impressão. O próprio jovem reconhece o mau comportamento. Mas alega que precisava dar um sinal de força aos outros para sobreviver.
Nas quadras esportivas, contou, ajudava os integrantes de uma determinada facção a atacar ¿os alemão¿ (sic), como se refere aos inimigos, para conquistar a confiança do grupo:
¿Quis provar que eu não era bobo¿.
Um dos gestores da unidade onde Ezequiel passou a maior parte dos três anos confirma seu caráter irascível. Acusa-o de usar a vantagem física e intelectual para se impor sobre os mais novos da unidade, obrigando-os a entregar-lhe balas e biscoitos, ao mesmo tempo em que atraía a ira dos meninos de sua idade.
Outra autoridade pondera: o mau comportamento de Ezequiel expressa muito mais uma necessidade de autodefesa, frente aos riscos que corre, do que uma vocação inata para a violência. Do ponto de vista pedagógico, disse o gestor do Degase, Ezequiel foi um bem-sucedido cliente do sistema.
Caso raro, conseguiu completar o Ensino Médio, participou de todos os programas sociais oferecidos pela unidade (Afroreggae e cursos de computação), cuidou da biblioteca e teve ativa participação, como personagem, corroteirista e autor musical do Cine Degase, parceria do Departamento com a Mapa Filmes e de Zelito Viana.
São poucos os que estão do seu lado. A mãe, Rosângela, os defensores públicos (por dever de ofício) e uma psicóloga. Sem outros aliados, Ezequiel conseguiu articular a sua vida na unidade valendo-se, basicamente, de sua capacidade intelectual. Delimitou os espaços possíveis. A mãe diz que o garoto prestou o Enem este ano e passou.
Sua recente transferência, cumpridos os três anos de medida socioeducativa, para um programa de proteção à criança e ao adolescente ameaçados de morte, onde viveria secretamente com a família, provocou uma onda de revolta. Com a pressão, a Justiça recuou e o mandou de volta à custódia do estado.
O regime agora imposto a Ezequiel é o de liberdade relativa. Sob o argumento de que não está totalmente apto para uma vida normal, pois não se livra dos problemas, o rapaz foi conduzido a um Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad), no interior do Rio, para continuar a medida socioeducativa em regime semiaberto.
Pode sair para estudar ou trabalhar, mas deve retornar ao instituto para dormir. Pelo menos é isso que diz a decisão judicial. Mas, na prática, não há o que fazer fora da unidade.
Outro Ezequiel, o profeta do Antigo Testamento, ensina: ¿Mas se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu, e guardar todos os meus estatutos, e fizer juízo e justiça, certamente viverá; não morrerá.¿.
Vera de Paula, a produtora de cinema que trabalhou com Ezequiel ¿ o rapaz participou, com outros 45 jovens em conflito com a lei, de um curta rodado em dezembro do ano passado ¿ lamenta que a morte nas unidades, e mesmo fora delas, seja muito mais do que um desígnio bíblico às almas pecadoras, não dando chance a conversões:
¿ Não fizemos um filme sobre o Ezequiel. Minha discussão é sobre os jovens em conflito com a lei. É importante falar sobre todos os que saem. O menino envolvido na morte de um dos Detonautas, por exemplo, ficou lá três anos e morreu ao sair. E muitos outros voltam às unidades.
No vigésimo aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente, que derivou da Constituição Cidadã de 1988, com a intenção de mudar o caráter segregador das medidas impostas aos jovens infratores por medidas de reinserção social, Ezequiel é um impasse. Como diz uma autoridade conhecedora do caso, o próprio jovem ¿sabe o que pode fazer para se reintegrar, gostaria de fazer, mas não acredita que seja possível¿.
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A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a maldade do pai, nem o pai levará a maldade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio cairá sobre ele. Mas se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu, e guardar todos os meus estatutos, e fizer juízo e justiça, certamente viverá; não morrerá (Profetas, Ezequiel, 18:20-21).