Título: O resgate da nossa identidade
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 07/03/2010, O Mundo, p. 40
Foi há 50 anos que senti meu primeiro terremoto, que ainda me causa pesadelos. Estava, em 22 de maio de 1960, assistindo a um jogo de futebol no Estádio Nacional, em Santiago, quando se ouviu um ruído ensurdecedor. Quando terminou, tínhamos acabado de passar por um tremor que chegou a 9,6 graus na escala Richter, o maior já registrado.
Não demoramos a saber que a destruição foi enorme. Talvez pior que a convulsão da terra, que arrasou povoados e sacrificou milhares de pessoas, foi o maremoto que atingiu a costa. Viajei à região uns meses depois. Soube do sofrimento e do terror.
Lembro-me de tudo isso agora, décadas mais tarde, como uma maneira de dar alguma perspectiva histórica sobre este último sismo, e para ver se isso me ajuda a descobrir qualquer sentido no que acaba de acontecer.
É possível medir o que mudou no Chile neste meio século, contribuindo para a pergunta mais urgente: e agora, o que vai acontecer? O Chile é hoje muito mais próspero que há 50 anos, apesar de ainda sofrer com desigualdade na distribuição de renda tão abissal como vergonhosa. Esta afluência relativa nos deixa mais bem equipados para enfrentar a catástrofe atual. Paradoxalmente, os avanços deixam o país e seus cidadãos estranhamente vulneráveis e desamparados. Quanto mais estradas temos, mais rachaduras pode sofrer o asfalto.
E essa riqueza, aliás, não tem se acumulado, sem graves consequências sociais e até morais. Em 1960, uma nação desmembrada logo se uniu para, junta, empreender a reconstrução. Passei semanas ajudando a recolher dinheiro, alimentos, cobertores e colchões que foram enviados ao sul com caravanas de estudantes e voluntários entusiasmados. Foi uma lição de solidariedade que nunca esqueci. Se hoje o Chile é mais abastado, também se tornou uma sociedade mais egocêntrica e individualista, onde em vez de uma visão de justiça social para todos, a maioria dos cidadãos se dedica a consumir de maneira desenfreada, o que acarreta a deterioração, um estresse psicológico considerável da população.
Como qualquer grande infortúnio, esta tragédia pode ser vista como uma oportunidade para nos perguntarmos quem somos, o que realmente importa, como estamos levando adiante a recuperação, não apenas de hospitais destruídos, estradas arruinadas e ossos torcidos, mas também de nossa precária identidade.
Há que se resgatar a força de onde vão surgir os esforços mais duradouros e importantes para reerguer nosso país, motivo pelo qual temos de prevalecer, uma vez mais, como em tantas passadas, contra as forças cegas e roucas da natureza.
ARIEL DORFMAN escreveu este artigo para o El País