Título: Terremoto deixa herança maldita para Piñera
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 07/03/2010, O Mundo, p. 40
Próximo presidente, que toma posse na quinta-feira, terá desafio de reerguer país e manter crescimento
SOLDADOS REMOVEM (acima) o entulho de construções destruídas pelo terremoto e pelas tsunamis em Talcahuano. Ao lado, o que sobrou de uma das principais pontes na ligação rodoviária entre o centro e o sul do país: 3 anos de reconstrução
ESCOMBROS DE Dichato, cidade litorânea arrasada pelas tsunamis
SANTIAGO. Uma imagem politicamente emblemática martela o imaginário do eleitorado chileno, absorvido pela tragédia que dividiu o sul e o norte do Chile e reacendeu a discussão sobre o futuro do país, não só do ponto de vista estrutural, mas econômico, às vésperas do fim do governo de Michelle Bachelet e do início da futura administração de Sebastián Piñera, que assume quinta-feira o Palácio La Moneda. Entre reuniões com autoridades, Piñera caminhava por ruas de Santiago na sexta-feira quando tirou do bolso três moedas e entregou a esmola a um mendigo. Diante dos fotógrafos e cinegrafistas, o futuro presidente do Chile sorriu e logo abandonou a cena, sem olhar para trás. Um dos mais bem-sucedidos empresários da América Latina, Piñera chega ao poder à sombra de um devastador terremoto seguido de tsunamis. As tragédias colocarão à prova seu poder de gerir dinheiro público para reabrigar as vítimas do terremoto e, também, manter o país na rota de um crescimento econômico de 6% ao ano. Isso em meio a previsões de que o terremoto afete três dos quatro anos de seu mandato.
¿ Esse é um governo que, ideologicamente, não tem confiança no Estado, por isso será preciso rever esse papel e incorporar de maneira construtiva o setor privado na organização do país ¿ avalia o doutor em Ciências Políticas e diretor do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, Walter Sánchez.
Para ele, o novo governo deveria estabelecer à primeira hora um pacote prevendo redução da carga tributária, principalmente a favor de pequenas e médias empresas, responsáveis hoje pela manutenção de 80% dos postos de trabalho naquele país.
No apagar das luzes e sob o argumento de que as diferenças políticas devem ficar de fora num momento em que o país vive uma de suas maiores tragédias naturais, a atual gestão divide a responsabilidade no processo de restruturação do país com o futuro governo, com destaque para a necessidade de manutenção de um processo de estabilidade econômica. O Chile está entre os países latino-americanos com maior crescimento econômico.
¿ Mas será preciso realizar o sacrifício tributário que tanto se necessita. O país precisa muito de doações, que agora poderão ser permanentemente deduzidas de impostos ¿ disse o ministro da Fazenda, Andrés Velasco. ¿ Também é preciso estancar a inflação, que já excede 7%, como forma de assegurar melhores condições para todos os setores.
Mas ao herdar do governo atual uma situação calamitosa, Piñera deve, inicialmente, colocar a questão econômica de lado, e já deu os primeiros sinais de que pretende trabalhar para liderar a recuperação estrutural do país. Com a ressalva de que caiu em seu colo uma herança maldita, com fortes críticas à gestão do governo Bachelet ¿ principalmente no que se refere às falhas no monitoramento de ondas gigantes que se seguiram ao terremoto ¿ o futuro presidente deve tomar as rédeas de setores importantes da Defesa Nacional, como o Escritório Nacional de Emergências.
¿ Vamos investir pesado em alta tecnologia, e não só para levantar edifícios, mas para melhorar o sistema de alerta frente às catástrofes. Esse é um grande desafio que vamos incorporar ao nosso programa de governo ¿ disse o presidente eleito.
Por mais que o futuro governo tenha de assumir responsabilidades sobre o desastre, há quem analise que o foco na tragédia pode criar um processo de estagnação de políticas públicas importantes, principalmente em setores de saúde e educação.
¿ O presidente Piñera precisará ter visão de amplitude sobre a tragédia. Ao mesmo tempo em que tem de captar e redirecionar recursos públicos para levantar o país, ele não pode ficar preso a esse episódio, pois grande parte do país não foi atingida e tem expectativa em relação a suas promessas ¿ analisa Fernando Arancuana, professor de Política Nacional da Universidade do Chile.
O terremoto sacudiu o campo econômico que será herdado por Piñera também por conta dos possíveis empréstimos que o governo Bachelet pretende adquirir junto a instituições financeiras internacionais, se assim for necessário para reorganizar o país.
¿ Temos a sorte de contar com recursos próprios, e vamos usá-los. Mas se precisarmos de apoio internacional, vamos recorrer também ¿ adiantou o ministro Velasco.
Piñera quer controle absoluto sobre atos do governo
Economista formado em Harvard, Sebastián Piñera anunciou, em meio aos reflexos do terremoto, que não pretende mais se desfazer de suas ações da companhia Lan Chile, a maior do país, assim como diz em reuniões reservadas que também quer ter as rédeas das decisões tomadas em cada área de seu governo, transferindo a si próprio a responsabilidade de cada um dos atos de seu governo.
¿ Quero saber e ver tudo o que acontece no meu país ¿ repete ele.
Na última sexta-feira, quando se deparou com o morador de rua, o futuro presidente do Chile decidiu que tiraria do próprio bolso o dinheiro que daria ao rapaz, sem saber que a cadeira de rodas que ele usava para pedir dinheiro era fachada. O homem saiu andando. Piñera não viu.