Título: A periferia morena virou credora
Autor: Oswald, Vivian; Beck, Martha
Fonte: O Globo, 08/03/2010, Economia, p. 27
Diretor critica instituição: o FMI é gerido de maneira obsoleta
Em menos de três anos, o economista Paulo Nogueira Batista Jr. - que desembarcou em Washington em 2007 para ocupar a Diretoria Executiva do FMI para Brasil e outros oito países - viu a instituição passar por uma verdadeira reviravolta. Afirma que a crise financeira global abalou o pensamento econômico tradicional e levou o Fundo a rever suas doutrinas. Pela primeira vez desde que as turbulências arrefeceram, ele abriu o verbo contra a instituição. Em entrevista ao GLOBO, disse que a instituição é gerida de forma obsoleta. Ele identifica uma inversão total nos paradigmas da instituição e de sua clientela: "Hoje (quem precisa) são os brancos de olhos azuis, europeus. A periferia morena, mulata, a amarela virou credora".
Vivian Oswald
O que aconteceu com o FMI após a crise?
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.: A crise que teve origem nos principais países desenvolvidos, sobretudo em EUA e Europa, abalou o pensamento econômico tradicional e levou a uma revisão de doutrinas no FMI. O Fundo flexibilizou seus instrumentos de empréstimo, seu modo de atuar nos países que a ele recorrem. Foi decorrência de crise, pressão dos países em desenvolvimento e experiência de alguns deles nas turbulências.
Estudos do FMI admitem metas de inflação mais altas e controle de capital. Há pressão para mudar?
PAULO NOGUEIRA: Esses dois estudos são exemplos do que acontece não só fora, mas também no FMI, por causa da crise. Isso levou muita gente do FMI a responder às pressões com uma indicação de que está disposto a rever doutrinas e dogmas.
Como rever estas doutrinas?
PAULO NOGUEIRA: Quando cheguei lá em maio de 2007, o pensamento dominante do FMI rejeitava o controle de capital. Era até hostil. Hoje, o Fundo reconhece a importância das reservas altas. Em 2007 ainda, o FMI queria que o Brasil reduzisse a meta de inflação e estreitasse o intervalo de confiança, sempre maior que em outros países. Felizmente, o Ministério da Fazenda não deu ouvidos. Hoje o Fundo recomenda aumentar (as margens).
Metas de superávit primário sempre balizaram acordos com o Fundo. Em 2009, o Brasil abateu da meta gastos com investimentos.
PAULO NOGUEIRA: O Fundo antigamente enfatizava até demais o ajuste fiscal. Com a crise centrada nos países desenvolvidos, houve reconhecimento de que a política fiscal deveria ter papel anticíclico, anti-recessivo e um endosso à flexibilização de políticas fiscais nos desenvolvidos e nos em desenvolvimento que tivessem espaço para tal. É uma mudança significativa.
As reformas em curso darão mais poder aos emergentes?
PAULO NOGUEIRA: Uma primeira reforma foi aprovada em 2008 para cotas e votos que precisa de ratificação do Senado brasileiro. O Brasil foi um dos principais beneficiados. Agora está em discussão reforma mais ambiciosa. Anda com dificuldade porque, para que os países em desenvolvimento tenham mais participação, alguém tem que perder. A Europa, de maneira geral, está sobrerrepresentada.
E agora?
PAULO NOGUEIRA: Os europeus se agarram a essas posições. O jogo básico é como convencê-los de que a legitimidade e a eficácia do FMI e do Banco Mundial dependem de modernização, para que elas reflitam a nossa realidade. A Europa tem quase um terço dos votos. Eles comandam nove das 24 cadeiras da diretoria do FMI. Por tradição, têm o direito de indicar o diretor-gerente. Estas instituições ainda estão sendo geridas de maneira obsoleta. Se quiserem ter um papel eficaz no pós-crise, têm que se adequar à realidade.
A Grécia está em situação difícil. Qual é o papel do FMI neste caso?
PAULO NOGUEIRA: Alguns países europeus já recorreram ao Fundo: a Lituânia, a Romênia e a Hungria. Além de ser da UE, a Grécia está na zona do euro. Os europeus entendem que isso afetaria a credibilidade do euro. Quando países em desenvolvimento diziam que que havia um estigma de recorrer ao Fundo, os europeus diziam que não. Mas não querem que a Grécia resolva pelo FMI. Entendem que seria perda de prestígio. Hoje uma das clientelas mais importantes do Fundo são os brancos de olhos azuis, europeus. A periferia morena, mulata, a amarela virou credora.