Título: Histórias reconstruídas após a hanseníase
Autor: Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 14/03/2010, O País, p. 14

Crianças separadas dos pais que tinham a doença buscam o passado e suas identidades, além de tentar encontrá-los

MARLI SILVA e Mirtes Oliveira mostram cópia da lei que permite que as vítimas da hanseníase sejam indenizadas

BRASÍLIA. A assistente social Teresa Santos Oliveira, hoje com 53 anos, soube há apenas oito anos que seus pais biológicos eram portadores de hanseníase. Como centenas de crianças filhas de hansenianos, Teresa foi retirada do convívio do pai e da mãe, isolados compulsoriamente no hospital-colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (SP). Esses locais eram conhecidos como leprosários. Como inúmeras crianças nessa condição, ela foi adotada e ganhou nova identidade. Quando soube, Teresa foi buscar nos prontuários da instituição a sua real história e descobriu que nasceu Maura Regina Luchetti. Agora, tem duas certidões de nascimento.

¿ Quando criança, as pessoas olhavam para mim de forma diferente, cochichavam. Não sabia a razão. Fui atrás do meu passado. Hoje tenho duas identidades e faço o caminho de volta ¿ disse Teresa, que vive em Barueri (SP) e coordena a montagem de um Cadastro Nacional dos Filhos de Hansenianos.

Doentes eram buscados em casa e isolados

Sempre estigmatizada, a hanseníase, décadas atrás, levou os portadores a serem isolados da sociedade. Foi criada a polícia sanitária, que buscava os hansenianos em suas casas e os trancava nesses lugares. Muitos internos trocavam de nome para fugir do preconceito.

Separados dos pais, os filhos eram levados para orfanatos e educandários. Mesmo não tendo a doença, sentiam a perseguição de seus familiares. Até hoje convivem com o preconceito. Marli Silva, de 51 anos, lembra bem de sua infância num educandário no Rio, onde viveu dos 6 aos 16 anos. Sua mãe biológica, hanseniana, vive na colônia de Curupaiti, em Jacarepaguá. Marli conta que chegou a levar surras. Naquela época, ela se encontrava com a mãe uma vez por ano, em salas separadas por vidro. Não era permitido qualquer contato físico. Quando a visitava no educandário, sua mãe se apresentava como tia.

¿ Se dissesse quem ela realmente era, não entrava ¿ disse Marli, que lembra o que aconteceu com seu bolo de 15 anos:

¿ Foi todo retalhado. É bolo de lepra. Minha infância foi para o caixa-prego. É muito triste, uma lembrança horrível para mim ¿ disse Marli, que hoje é funcionária do Curupaiti. Ela diz que o preconceito continua.

¿ Na rua, se digo que trabalho ou vivo aqui, as pessoas olham com a mesma discriminação daquele tempo.

O caminho da volta, em alguns casos, é feito pelos pais. Anos depois, curados da doença, e até hoje morando nessas colônias, tentam localizar filhos que foram obrigados a abandonar. Caso de João Francisco Saldanha, de 87 anos, que vive numa dessas unidades, no hospital Itapoã, em Porto Alegre (RS). Com auxílio de assistentes sociais, Saldanha reencontrou a filha, 40 anos depois. Mas não foi um reencontro fácil. Regina Saldanha, que vive em Uruguaiana (RS), resistiu a falar com o pai. Ela o culpava pelo abandono.

¿ Foi como tirar a sorte grande. No registro dela, nem aparece meu nome. Hoje, passo Natal e Ano Novo com ela e meus netos. Estou realizado ¿ disse João Saldanha, que doou parte da indenização que recebeu do governo federal à filha, que vive com dificuldade.

Funcionária do setor administrativo do hospital de Curupaiti, Mirtes de Oliveira Vieira, 37 anos, é filha de uma interna dessa colônia. Ela viveu em educandário, onde ganhou outro nome e é conhecida também como Suzana. Posteriormente, foi encaminhada para viver com um casal amigo da família. A mãe também tinha duas identidades, para fugir do estigma de ser uma portadora da hanseníase.

¿ Para visitá-la na colônia, ia escondida dentro do carro. Colocavam panos em cima da gente para enganar os guardas. Filho de doente era proibido de entrar. Ninguém sadio podia passar ¿ disse Mirtes.