Título: Novo surto de pobreza assusta o rico Japão
Autor: Sarmento, Claudia
Fonte: O Globo, 14/03/2010, O Mundo, p. 39

Pesquisa mostra que 15% da população já não pertencem à classe média, e governo discute tema antes ignorado

HOMEM RECOLHE caixas de papelão para reciclar nas ruas de Tóquio: trabalho informal cresceu no país

TÓQUIO. Difícil falar em pobreza num lugar onde não há nada que se pareça com as favelas brasileiras, não se veem crianças desnutridas, mendigos são uma imagem rara e os índices de criminalidade são baixos. A impressão que se tem, principalmente nas ruas de Tóquio, é que o Japão é um país composto apenas por uma classe média que vive confortavelmente. Mas números recentes comprovam que as aparências escondem uma nova realidade e vêm fazendo os japoneses discutirem, pela primeira vez em muitas décadas, o aumento da pobreza, algo que eles achavam que tinha ficado para trás, nos trágicos tempos que se seguiram à derrota na Segunda Guerra Mundial.

¿ Pobreza não é um problema no Japão desde a década de 60. Nós, japoneses, sempre nos consideramos uma sociedade sem grandes diferenças de classes, mas não é isso o que os números dizem. É uma pobreza invisível, não tão evidente quanto em países menos desenvolvidos, mas ela está aí ¿ afirma a pesquisadora Aya Abe, do Instituto Nacional de Pesquisa sobre População e Previdência Social.

Divórcios numa sociedade machista agravam problema

Os dados aos quais a especialista se refere foram anunciados recentemente pela administração do primeiro-ministro Yukio Hatoyama, quebrando um jejum de 45 anos, durante os quais o governo japonês não promoveu pesquisas oficiais sobre o assunto. As taxas anteriores eram conhecidas apenas através de relatórios da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). De acordo com o Ministério do Trabalho, Saúde e Previdência Social, a pobreza afeta 15,7% da população japonesa, segundo dados de 2007. O número, alto para uma superpotência econômica, assustou a opinião pública. Em 2004, segundo a OCDE, esse percentual era de 14,9%.

A taxa se refere à pobreza relativa, conceito que tem como linha divisória a metade da média salarial da população. Com a crise mundial em 2008 e a recessão que se seguiu, é provável que esse índice ¿ que classifica o país como o quarto pior colocado entre as nações da OCDE ¿ já esteja maior em 2010.

¿ Você não vê crianças pedindo esmola nas ruas, mas as diferenças sociais estão crescendo há alguns anos. Antes, esse era um tema ignorado. A crise de 2008 fez soar o alerta ¿ diz Aya, especialista em desigualdades sociais.

¿A era em que quase todos os cidadãos japoneses se sentiam financeiramente seguros para se consideram `classe média¿ acabou. Hoje, há pessoas que não conseguem sequer satisfazer suas necessidades básicas, não importa o quanto trabalhem¿, resumiu o ¿Asahi Shimbum¿, um dos maiores jornais do país. Num editorial, o diário comemorou o fato de o governo Hatoyama, no poder há sete meses, ter tornado o assunto público, ¿enquanto a antiga administração se recusava a encarar o fato de que o Japão está se transformando numa superpotência pobre¿.

As raízes do problema são mais profundas que a crise iniciada com a quebra do Lehman Brothers, que levou o desemprego a bater o recorde do pós-guerra. As transformações sociais já vêm acontecendo há mais tempo. O crescimento do país foi às alturas na década de 80, mas, com o estouro da bolha econômica, os japoneses só se referem aos anos 90 como a ¿década perdida¿. As empresas começaram a trocar os trabalhadores fixos pelos temporários, mais baratos e com menos benefícios. Além disso, a população envelheceu (o Japão tem a mais alta taxa de idosos do mundo, 23% estão acima dos 65 anos), jogando para baixo a média salarial nacional.

Aya Abe destaca ainda uma mudança social significativa causada pelo aumento do número de divórcios num país tradicionalmente machista, onde as mulheres têm menos oportunidades de trabalho.

¿ A tradicional família japonesa, com três gerações trabalhando, está acabando. Cresceu o número de casas sustentadas por mães solteiras e 59% delas estão abaixo da linha de pobreza ¿ diz a pesquisadora. ¿ O índice de pobreza entre crianças chega a 15%. Basta falar com professores para ouvir relatos de crianças que não podem comprar material ou não tomam banho há uma semana porque suas mães têm dois empregos e elas ficam sozinhas em casa ¿ afirma.