Título: As masmorras do Espírito Santo
Autor: Paolillo, Saverio ; Melo, Tâmara
Fonte: O Globo, 19/03/2010, O País, p. 7

A experiência de entrar no Centro de Detenção Provisória deCariacica, na região metropolitana de Vitória, é assustadora. Quandoalguém entra na unidade, os cerca de 500 presos começam a gritar porsocorro e a entregar balas de borracha e de chumbo pelos pequenosrespiradouros dos contêineres metálicos que chegam a atingir 50 grausCelsius em dias de calor. A poucos quilômetros dali, no Departamento dePolícia Judiciária de Vila Velha, antes de chegar à cela, em que maisde 300 presos se acotovelam em um espaço de 30 vagas com apenas doisbanheiros, o visitante é obrigado a passar por dezenas de presosacorrentados pelo corredor.

Essas são apenas algumas das cenasde barbárie do sistema prisional do Espírito Santo. A situação vemsendo denunciada por organizações locais há anos, mas apenas nasúltimas semanas a rotina de mortes, torturas e superlotação nospresídios, delegacias e também nas unidades socioeducativas do estadofinalmente ganhou repercussão nacional e internacional. A apresentaçãona ONU, segunda-feira passada, em Genebra, das cenas de horror e dasevidências de participação efetiva das autoridades capixabas, chocou aplateia estrangeira.

A violação dos direitos das pessoasprivadas de liberdade tornou-se regra não apenas no Espírito Santo,onde a gravidade do caso é emb l e m á t i c a e m e re c e atençãoespecial, mas em todo o país, que tem quase meio milhão de presos eocupa a quarta colocação no mundo em população prisional.

Após aexposição na ONU, o sistema prisional brasileiro será discutido apartir de hoje em audiência na Comissão Interamericana de DireitosHumanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Na OEA, asorganizações envolvidas pretendem aprofundar o debate sobre asresponsabilidades de governantes e magistrados quanto à superlotação eviolência nos presídios. Esperase que a audiência sirva como umestímulo para que se discutam saídas efetivas para o sistema prisionaldo Brasil e o crescimento descontrolado da população carcerária,formada majoritariamente por jovens negros moradores de áreas pobres.

Assoluções até agora adotadas costumam girar apenas em torno de medidaspaliativas, como mutirões carcerários e a inauguração de novospresídios. No Espírito Santo, por exemplo, cerca de 250 presos dãoentrada mensalmente no sistema, e apenas 50 saem, num crescimentoexponencial de ao menos 200 presos por mês.

Novas unidades já nascem superlotadas e sempre com os mesmos problemas.

Nasegunda-feira passada, quando o assunto era debatido na ONU, novasdenúncias de torturas e morte eram divulgadas na imprensa local, destavez em um presídio recéminaugurado.

É necessário atacar oproblema pela raiz. A mera política de criação de vagas não sesustenta. Está claro que não é possível manter tal fluxo de entrada nospresídios, que apenas reflete uma política de segurança baseada narepressão-encarceramento e a preferência obsessiva da Justiçabrasileira pela pena de prisão. Para se ter uma ideia, quase metade dapopulação prisional do Brasil (209 mil pessoas) é de presos provisórios nunca tiveram seus crimes julgados. O Executivo divide aresponsabilidade com Poder Judiciário.

As denúnciasinternacionais na ONU e na OEA podem servir como instrumentos depressão para que o Brasil possa avançar na direção de uma política deEstado que respeite os direitos humanos dos presos, dos funcionários ede todos aqueles que de algum modo sejam afetados pela violênciainstitucional nas prisões brasileiras

TAMARA MELO é advogada da organização não governamental JustiçaGlobal. PADRE SAVERIO PAOLILLO, o padre Xavier, é coordenador daPastoral do Menor do Espírito Santo.