Título: Fora, Dona Solange!
Autor: Brito, Judith
Fonte: O Globo, 25/03/2010, O País, p. 7

Entre os inúmerostópicos polêmicos trazidos pelo Programa Nacional de Direitos Humanos 3proposto pelo governo, está o que trata do famigerado "controle socialda mídia". Com nova roupagem, trata-se do mesmo tema já propostoanteriomente: havia este jargão presente na tentativa de criação doConselho Federal de Jornalismo em 2004, ou na Confecom (ConferênciaNacional de Comunicação) em 2009, para citar só alguns exemplos. Naverdade, incluiu-se um "social" na expressão para amenizar ummonstrengo inaceitável, o do controle da mídia, leia-se censura.

Vamos reconhecer: há grupos no atual governo que têm verdadeiraideia fixa e muita persistência, por insistir repetidamente nesteassunto, mesmo após ele ser rechaçado igual número de vezes. Trata-sede preocupação paranoica e fora de propósito para um governo que se dizdemocrático. A mídia é livre nas democracias maduras. Governantes podematé não gostar de estar sujeitos à função diária dos jornais, que é ade levantar informações, investigar e publicar. Podem até reclamar denotícias que tenham sido publicadas. Podem, finalmente, processarjudicialmente as publicações, caso se sintam injustiçados em algunscasos. Mas respeitam o papel fundamental da mídia para a democracia -regime que pressupõe a admissão da diversidade de opiniões e aalternância de poder.

Felizmente, estamos longe do tempo em que se podia impor àsociedade um organismo com a função de julgar o que deve ou não serescrito, dito ou mostrado. Durante o regime militar, a figura da DonaSolange tornou-se o símbolo tragicômico da censura. Para quem é maisjovem ou não se lembra, Dona Solange foi diretora do Departamento deCensura Federal de 1980 a 1984, já no fim da ditadura.

O modelo da censura era simples: qualquer notícia ou análise contrao governo ou ainda ideias ou fatos que pudessem ser considerados - navisão do tal grupo - perniciosos à pobre e ingênua população deveriamser previamente limados, e ponto final. No auge do regime militar, asaída dos jornais era publicar espaços vazios, receitas de bolo oupoemas de Camões.

Na concepção do PNDH 3, um grupo julgaria quais órgãosindependentes de imprensa estariam menos ou mais adequados do ponto devista dos direitos humanos, e criaria um ranking de qualidade. Na visão(ideológica) de quem? Do grupo, é claro. Como se os consumidores dosveículos de mídia não soubessem avaliar o que querem.

Não precisamos do espectro de Dona Solange rondando nossaatividade. A mídia é uma das instituições que mais contribuem para adefesa dos direitos humanos, ao apresentar diariamente fatos eanálises, e ao expor a diversidade de opiniões que pode conviverpacificamente num mesmo país. É uma arrogância imaginar que é precisoindicar à sociedade quem tem ou não tem afinidade com os preceitoshumanitários. Estamos todos aprendendo juntos neste nosso caminho daconsolidação da democracia, e temos certeza de que há formas maisinteligentes de ler Camões do que em matérias censuradas de jornais.

JUDITH BRITO é presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ).